sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Éden


 O diretor Ron Howard já experimentou a consagração com “Uma Mente Brilhante”, e o largo sucesso com “Código Da Vinci”, contudo, de uns anos pra cá, seu cinema tornou-se claudicante, oscilando entre uma técnica apurada, um profissionalismo nítido e um vazio de iniciativa, de inspiração que engessava seus trabalhos.

Embora seja uma obra relativamente interessante e pertinente (ainda mais inserida no panorama genérico atual do cinema norte-americano), “Éden” padece de alguns desses lapsos.

Baseado num fato real transcorrido no início do Século XX, “Éden” constrói uma narrativa a partir de indícios muitas vezes contraditórios em relação aos acontecimentos retratados. Na ânsia de concretizar os fatos sem assumir pontos de vistas unilaterais, o roteiro de Noah Pink, a partir de conceitos elaborados por ele e pelo diretor Ron Howard, oferece uma cadeia de acontecimentos que terminam não priorizando a postura, nem a índole de ninguém, o resultado é um filme onde pessoas torpes são ocasionalmente confrontadas com outras ainda piores, numa exposição algo involuntária da inerente maldade humana.

Após a Primeira Guerra Mundial, o médico e filósofo Friedrich Ritter (Jude Law) parte para a Ilha Floreana na distante região dos Galápagos, junto da colega Dore Strauch (Vanessa Kirby) a fim de se afastar da humanidade e de criar, ali, um conceito inédito de meio de vida, rompendo com as defasadas considerações sociais, e muito amparado no niilismo espartano de Friedrich Nietzsche. Todavia, uma fagulha de vaidade e de necessidade de ser enaltecido ainda queima dentro do Dr. Ritter, por isso, de tempos em tempos, nas visitas de algum navio errantes por aquelas águas longínquas, ele aproveita para enviar ao mundo exterior suas cartas, nas quais deposita sua retórica sobre essa nova forma alternativa de existência, que ele enxerga como um manifesto contra a tendência auto-destrutiva dos governos mundiais.

Com o tempo, suas cartas –publicadas em jornais e revistas da época –se tornam uma espécie de sensação, e o Dr. Ritter, um lenda em seu exotismo. Até que, no inverno de 1932, o exemplo de Ritter leva Heinz Wittmer (Daniel Brühl), sua esposa Margret (Sydney Sweeney) e seu filho (Jonathan Tittel), à Ilha de Floreana, a fim de partilhar dessa mesma vivência, esse rompimento com os grilhões de conveniência social.

O filho de Heinz sofre de tuberculose, então intratável, com péssimas perspectivas pela medicina da época, e a jovem esposa, Margret, está, ainda sem saber, grávida. Ao chegarem em Floreana, o Dr, Ritter e Dore, arredios, os recebem com inesperado desdém –a contundente utopia que eles planejavam ali não vinha atrelada à traquejo social, e nem tampouco era pensada para envolver outros além deles próprios.

Instalados, de início, numa das cavernas da região (!), Heinz e Margret vão se adaptando à duras penas, construindo uma casa e erguendo um lugar onde almejam, de fato, viver –esses percalços surgem registrados nas cartas que Marget, então com 23 anos, escreve e envia, de tempos em tempos para a mãe.

No entanto, algum tempo depois, chega em Floreana outra comitiva, aquela que, desta vez, realmente irá virar tudo de pernas pro ar: Os subalternos, criados e meros bajuladores da Baronesa Eloise Von Wagner de Bousquet (Ana De Armas, ligeiramente histriônica no retrato de uma das mais odiosas vilãs do cinema recente). Afirmando estar lá na ilha para a construção de um hotel exclusivo para turistas muito ricos, a Baronesa se instala, com seu séquito –entre os quais, o amante e capacho Lorenz (Felix Kammerer, de “Nada de Novo No Front”) e outro amante (!) e guarda-costas Phillipson (Toby Wallace) –numa interseção entre as moradas de Ritter e Dore, e de Heinz e Margret. Ela cria divergências –abre as correspondências de Ritter e tenta colocar a culpa em Heinz –protagoniza excessos e age com displicência –quando a comida que levou (e que consomem desordenadamente) acaba, envia seus lacaios para roubar de Heinz e Margret.

Não demora muito para que esse paraíso (que de paradisíaco, desde o começo, nunca teve nada!) se torne um inferno com os conflitos de ordem íntima criados por ela –na realidade, a própria Baronesa é, em si, um embuste: Uma golpista que singrou a Europa manipulando homens ricos com sua beleza, ela tenta sua última cartada ali, em Floreana, na tentativa de se estabelecer no que pode ser um empreendimento imobiliário legítimo, valendo-se de todos aqueles que sua lábia e sua capacidade de sedução arregimentarem em favor de seus interesses.

O que acontece, todavia, é um caldeirão de tensões que, eventualmente, irá explodir.

Um filme amargo que opõe a sobrevivência à convivência (como se fossem fatores opostos) e que parece refletir sobre o quanto as celeumas humanas, como a ganância e a cobiça, são incapazes de serem evitadas pelo homem, por mais que ele queira, “Éden” se ressente justamente dessa sua contundente postura moral –não há personagens íntegros ou incorruptíveis aos quais a narrativa possa se ancorar, e dessa forma assim ambígua eles são interpretados pelo (ótimo) elenco: Jude Law ostenta, carrancudo, uma desilusão que só o empurra cada vez mais para o antagonismo e a violência, afastando-o da paz e da transcendência inicialmente pretendida; Vanessa Kirby vive uma mulher de um discurso altivo acerca de suas escolhas, mas cujo olhar entrega a insatisfação que é incapaz de admitir; Daniel Brühl na segunda colaboração com Ron Howard (a primeira foi o excelente “Rush”) se mostra preciso no registro minimalista de seu personagem; e Sydney Sweeney, talvez, a grande surpresa do filme, oblitera as impressões de símbolo sexual que, em geral, a perseguem para entregar aqui uma interpretação introspectiva orientada por uma metamorfose sutil e, ao fim do filme, desconcertante.

Nenhum comentário:

Postar um comentário