quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A Longa Marcha - Caminhe Ou Morra


 Stephen King escreveu “A Longa Marcha” ainda na faculdade, durante a segunda metade da década de 1960 –antes da consagração como escritor de livros de terror, o que explica também o gênero distinto do livro, ficção científica distópica –tal especificação de tempo serve para explicar muito bem a alegoria embutida no argumento: Ao moldar uma trama na qual jovens voluntários eram conduzidos à um esforço descomunal que levava a maior parte deles à morte por indiferentes senhores da guerra (militares), King fazia uma clara referência à Guerra do Vietnam que vitimizava incontáveis vidas de jovens norte-americanos num conflito que todos (exceto, os mandatários no poder) enxergavam como algo despropositado, sem sentido. Contudo, se “A Longa Marcha” foi o primeiro livro que King escreveu, ele não foi o primeiro que ele publicou: Somente após o sucesso literário de “Carrie-A Estranha” (logo seguido pela adaptação cinematográfica dirigida por Brian De Palma) que King pôde lançar, em 1979, “A Longa Marcha” –e ainda o fez sob o pseudônimo de Richard Bachman, com o qual lançou diversos outros livros.

Era irônico, portanto, que a primeira obra de Stephen King, dentre tantas que ele perpetrou e que despertaram tanto interesse nos estúdios de Hollywood, nunca tenha sido adaptada para cinema antes –até agora, com o lançamento de “A Longa Marcha-Caminhe Ou Morra”.

Dirigido por Francis Lawrence (que assinou todas as excelentes continuações de “Jogos Vorazes”), a trama de “A Longa Marcha” diz respeito a uma caminhada promovida por militares e acompanhada por todo o país. Nesse futuro, os EUA são uma nação colapsada, e a Longa Marcha é uma campanha anual que recruta voluntários para restaurar o ânimo e o orgulho do país. São cem rapazes que haverão de encarar o desafio de caminhar, num determinado ritmo, por uma estrada que atravessa cerca de cinco estados norte-americanos. Ao vitorioso é concedido um desejo (qualquer um!) a ser realizado, além da satisfação de viver bem financiado o resto da vida –uma amostra do quanto a persistência e a obstinação são recompensadas pelo governo.

Entretanto, os noventa e nove participantes restantes são impiedosamente mortos! Explica-se: Não há linha de chegada para a Longa Marcha, ganha aquele que tão somente for o último a restar em pé.

Durante toda a caminhada –que perdura por dias a fio, sem qualquer pausa para descansar, dormir, comer ou fazer necessidades fisiológicas! –os participantes devem manter um ritmo específico, a cada vez que esse ritmo se reduzir ou parar, o participante é advertido, se após três advertências o participante não conseguir retomar a marcha, pela razão que for, ele é fulminado com um tiro na cabeça!

É nessas condições atrozes que o jovem Ray Garrity (Cooper Hoffman, de “Licorice Pizza”) embarca na Longa Marcha com motivos muito pessoais (que, mais tarde, serão elucidados) para vingar-se do grande idealizador dessa disputa, o cruel e megalomaníaco Major (Mark Hammil). Durante, essa exaustiva (em todos os níveis possíveis) provação, Ray sela um pacto de amizade com Peter McVries (o ótimo David Jonsson, de “Alien-Romulus”), um órfão de ideais convictos e positivos. Outros personagens participam da maratona: Pearson (Thamela Mpumlwana) cuja ingenuidade o leva a firmar laços de amizade com todos, Stebbins (Garrett Wareing) munido de impressionante compleição física que esconde um triste e doloroso segredo, Barkovitch (Charlie Plummer, de “Todo O Dinheiro do Mundo”) cuja muralha de sarcasmo para com seus colegas não o impedirá de sucumbir ao desespero e à agonia, Olson (Ben Wang, de “Karatê Kid-Lendas”) que ingressa na disputa crente de que sua dedicação teórica irá lhe garantir a vitória, Curley (Roman Griffin Davis, o garotinho de “Jojo Rabbit”), o mais jovem de todos, que mentiu a idade para participar, e será a primeira vítima desse esquema inclemente, e muitos outros, todos eles fadados e não chegarem vivos até o final –exceto um, e é preciso sofrer até o úlimo instante para saber quem será!

A escolha de Francis Lawrence para a direção é das mais acertadas: Conhecedor do material, por sua bem sucedida passagem na franquia “Jogos Vorazes”, Lawrence sabe enunciar os elementos de reflexão contidos no enredo, compor um registro claro, preciso, meticuloso e sensorial da jornada física assim retratada (com os efeitos físicos do desgaste se abatendo sobre os personagens de forma primorosamente evidente), desenvolver a empatia do público pela premissa e pelos personagens certos (o que ajuda a tornar tudo ainda mais angustiante), e ainda soube transpor habilmente a alegoria do livro original de Stephen King para a atualidade: Com a Guerra do Vietnam não mais em voga, “A Longa Marcha”, agora, parece refletir sobre a polarização política dos EUA, sobre a desumanização tóxica que influencia as gerações mais jovens internet afora, e sobre os famigerados reallity-shows, e a forma como a integridade física dos seres humanos inseridos nesses contextos termina tendo menos importância do que o registro do espetáculo.

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