sábado, 25 de outubro de 2025

Twin Peaks - Primeira Temporada


 Hoje em dia, a televisão norte-americana ombreia o cinema em qualidade técnica, artística e narrativa, mas, nem sempre foi assim. Até meados dos anos 2000, havia aquele tipo de comentário depreciativo quando uma obra parecia “feita para a TV” –na verdade, até mesmo eu já cheguei a usar, em outras ocasiões, esse tipo de observação.

Não é meu objetivo apontar os méritos dessa evolução, nem enumerar as obras responsáveis por isso acontecer, mas, em 1990, sem sombra de dúvidas, um tremendo abalo sísmico na questão da inovação dentro dos moldes até então tradicionalistas da TV norte-americana ocorreu com a realização e o lançamento da série “Twin Peaks” pela ABC, criada por Mark Frost e pelo mestre David Lynch.

Quem conhece o nome David Lynch deve ter uma boa ideia do quão inesperada e desconcertante “Twin Peaks” foi à sua época.

Realizado no mesmo ano de “Coração Selvagem” –que havia dado à Lynch a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1990 –o episódio-piloto de “Twin Peaks” é um filme de David Lynch com todas as letras: Lá estão as assombrações de natureza ambígua a espreitar nas sombras de uma aparente paisagem harmoniosa na classe média norte-americana como em “Veludo Azul”; lá estão os enigmas desafiadores que perpassam tempo, espaço, memória e alucinação tal qual “A Estrada Perdida”.

Na cidadezinha madeireira de Twin Peaks, no estado de Washington, perto do Canadá, é encontrado o cadáver da jovem Laura Palmer (Sheryl Lee, de “Os Cinco Rapazes de Liverpool”), moça que, pela reação dramática de todos, era muito bem-quista na comunidade. Para a investigação, é designado o agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) que, ao mesmo tempo que se encanta com o lugarejo e seus habitantes, não mede esforços para elucidar o cada vez mais nebuloso mistério da morte de Laura. Os métodos do Ag. Cooper se revelam pouco ortodoxos –diferente de outros personagens mais céticos (e que chegam a marcar presença nesta e nas outras temporadas), Cooper leva em conta, na sua investigação, pistas de natureza paranormal, tais como sonhos, delírios, visões e outras aparições mais, que realmente vão se somando, afastando “Twin Peaks” completamente de uma mera produção investigativa e adentrando irreversivelmente o terreno do surreal, do sobrenatural e do alegórico –material que David Lynchn, mais que qualquer outro dos demais diretores que se incumbem de alguns dos outros episódios, domina com maestria.

Também a galeria formidável de personagens suspeitos, estranhos e interessantes de Twin Peaks comparece para tornar ainda mais nebulosos os percalços da investigação: O Sr. Martell (Jack Nance, de “Eraserhead”, o primeiro filme de Lynch) responsável por encontrar o corpo de Laura, cuja sobrinha e inquilina de sua casa, a Srta. Packard (Joan Chen) é a representante de uma empresa estrangeira que disputa o monopólio com a serraria local –e é, ainda por cima, amante do xerife Harry Truman (Michael Ontkean); o ricaço Ben (Richard Beymer, do clássico “Amor Sublime Amor”), proprietário da dita serraria local; e sua filha, a belíssima Audrey (Sherilyn Fenn, maravilhosa) que se afeiçoa ao Ag. Cooper e decide investigar por conta própria os segredos de algumas pessoas de Twin Peaks; a jovem Donna (Lara Flynn Boyle), melhor amiga de Laura, decidida a mover sua própria investigação para descobrir quem matou a amiga, aliada ao ex-namorado dela James (James Marshall) e à prima de Laura, Maddy (também vivida por Sheryl Lee); há também o namorado atual de Laura, Bobby (Dana Ashbrook, de “A Volta dos Mortos-Vivos”), secretamente envolvido com a linda Shelly (Madchen Amick), garçonete casada com o violento Leo (Eric Da Re), um dos suspeitos do assassinato; e os pais de Laura, Leland (Ray Wise, de “Sol Nascente”) e Sarah (Grace Zabriskie, de “Drugstore Cowboy”), um mais pinel que o outro (!), além de vários outros personagens.

Amparado nessa galeria bastante instigante de personagens, e no mistério que ocupa o cerne de seu enredo –a pergunta “Quem matou Laura Palmer?” se tornou uma frase contumaz murmurada em meio às propagandas do início dos anos 1990, e deu origem à um fenômeno de frases de efeito que continuou em programas de sucesso como “Arquivo X” (“A verdade está lá fora!”) e “Heroes” (“Salve a líder de torcida! Salve o mundo!”) –“Twin Peaks” é uma obra que, a despeito de seus expedientes, desafia tentativas de ser categorizada; trata-se de uma brilhante junção de paixões, ódios, comportamentos misteriosos e razões improváveis numa só roupagem que abraça o suspense, o terror, o policial, o melodrama e a comédia na mesma proporção.

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