quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A Estrada Perdida

Certos filmes de David Lynch são difíceis de serem definidos, principalmente porque o diretor apresenta seus filmes como se fossem sonhos materializados. 
Ele lhes dá a mesma característica desconexa, onde os eventos não necessariamente explicam uns aos outros, onde as convenções de narrativa adquirem um propósito completamente novo e o roteiro está para gerar mais perguntas do que respostas.
Esse estilo singular de cinematografia surgiu, pela primeira vez, no cult e experimental "Eraserhead", esboçou alguns vestígios no desfecho algo enigmático de "Veludo Azul" (a cena com os capangas mortos em pé!) e se expressou com mais ênfase, ao menos nos anos 1990, em meio à série televisiva "Twin Peaks".
No cinema mesmo foi somente com o lançamento de "A Estrada Perdida" que David Lynch conseguiu reencontrar aquele contador de histórias do início de sua carreira, apaixonado pela metodologia onírica onde a fachada do absurdo esconde uma trama rocambolesca de ponderações muito pessoais.
“A Estrada Perdida” começa com um casal, um saxofonista (Bill Pullman, longe dos papéis cômicos e histriônicos) e sua esposa sensual (Patricia Arquette, estonteante). Eles passam a receber fitas cassete com tomadas de sua casa sendo filmada por alguém desconhecido, o quê os deixa alarmados.
(E percebe-se aí, uma provável influência desta obra no filme “Cachê” de Michael Haneke, e ainda que o estilo de Haneke seja bastante distinto, Lynch é o tipo de realizador que poderia influenciar seu trabalho)
As fitas, que vão chegando dia a dia, vão se revelando cada vez mais preocupantes; com o cinegrafista, quem quer que seja, invadindo cada vez mais sua privacidade, sem eles o terem percebido.
A última delas contém uma revelação inesperada e brutal.
E é quando o filme dá uma surreal e magnífica virada: o personagem principal, até então interpretado por Pullman acaba preso e, na cadeia, transforma-se no jovem Balthazar Getty (!?!), isso mesmo, outro ator, outro personagem, com outro nome e outra história!
A partir daí, vemos ele se cruzar com outros personagens, alguns podem ou não pertencer a mesma história do início, como Patrícia Arquette (mais deliciosa do que nunca) que antes era a esposa (e morena), mas então reaparece como amante de um gangster (e loira).
O gangster em questão (Robert Loggia), homem violento e bruto, não se dá conta, no início do caso entre o jovem e sua amante. Todavia, Lynch nos faz presumir e sentir que, no clima soturno e obscuro que envolve mesmo os acontecimentos mais banais, algo de terrível está prestes a acontecer.
Tal pressentimento é reforçado graças à presença amedrontadora e antológica do Homem Misterioso, interpretado com predicados extraordinários por Robert Burke: Uma presença em cena que nos instiga e abre o leque de possibilidades de sua trama a medida que ela vai se fragmentando mais e mais entre memórias efusivas, delírios e dimensões paralelas.
Ou não. 
Lynch até dá algumas pistas, deixando suspensa a ilusão de que elas podem ajudar a elucidar esse quebra-cabeça, mas a sensação, ao final deste filme magistral, provavelmente será a impressão enevoada que se tem ao despertar de um sonho, cujo significado nos escapa por completo.

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