quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Jogos Vorazes - A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes


 A distopia “Jogos Vorazes” criada na literatura por Suzanne Collins capitaneou um fenômeno editorial denominado Young Adults, para então ganhar vida no cinema, primeiro num filme dirigido por Gary Ross, e depois, em todo o restante da saga (que totalizou quatro longa-metragens) dirigida por Francis Lawrence –um entusiasta de futuros pós-apocalípticos desde que realizara “Eu Sou A Lenda”. Lançado alguns anos depois desse fenômeno –que, só para constar, encontrou muito de seu êxito na presença poderosa de Jennifer Lawrence interpretando a heroína Katniss Everdeen –o livro “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” mostrava a escritora e criadora Suzanne Collins revisitando aquele rico universo, desta vez, abordando os primórdios dos chamados Jogos Vorazes e, por consequência, uma espécie de trama de origem justamente do grande antagonista dos livros (e filmes) principais, Coriolanus Snow que, devido à trama se suceder 60 anos antes, é mostrado como um jovem no início da jornada que o transformará no grande vilão vivido por Donald Sutherland.

Embora a inevitável adaptação para cinema de “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” trouxesse como diretor, mais uma vez, Francis Lawrence (pois, todos concordam que ele soube dirigir os filmes com muito mais propriedade e perícia do que Gary Ross) algumas dúvidas incômodas a respeito do projeto pairavam no ar: Poderia “Jogos Vorazes” funcionar sem sua estrela principal, Jennifer Lawrence? E sem a personagem importantíssima, Katniss, que ela interpretava?

A sorte, do filme e de Suzanne Collins, é que Francis Lawrence, de fato, como diretor, compreendeu muito bem o material que manuseou, neste e nos filmes anteriores: Em suas mãos, os escritos instigantes de Collins ganham a ênfase certa, na analogia pontual que executam da atração das audiências por violência e sangue, na essência da distopia futurista em si como um espelho das mazelas morais do ser humano, e na advertência (certamente, repaginada de George Orwell e seu “1984”) de que o gênero como um todo (e este exemplar em particular) faz dos rumos políticos e apáticos da sociedade na desumanização dos oprimidos, exercida pelos opressores, donos dos meios de comunicação.

Ainda um rapaz muito jovem, e contando dez anos desde que seu país, Panem, sobreviveu aos chamados Dias Escuros (uma guerra impiedosa que opôs os doze distritos à capital), o ambicioso Coriolanus Snow (Tom Blyth, de uma energia a lembrar um jovem Rutger Hauer) vive na Capital almejando um futuro melhor para si, para sua avó (Fionnula Flanagan, de “Os Outros”) e para sua adorada prima, Tigris (Hunter Schafer, da série “Euphoria”). E tudo isso –além de prêmios, dinheiro e todo o prestígio que deseja –Snow sabe que só conseguirá obter se levar à vitória o garoto ou garota tributo que treinar nos iminentes Jogos Vorazes –uma mescla estranha e questionável entre torneio físico, chacina indiscriminada e reallity show promovido pela Capital onde os participantes descartáveis são ‘sorteados’ entre a população dos distritos –um espetáculo cuja audiência claudicante pode fazer desta décima edição (justamente aquela na qual Snow enxerga uma chance fugaz) a última.

Contudo, o destino parece oferecer alguma oportunidade de sucesso à Snow: Embora a garota-tributo delegada para ser treinada por ele, pelo rancoroso Highbottom (Peter Dinkagle), seja do Distrito 12, o mais pobre (o que significa que ela é desnutrida, fraca e a candidata nº 1 a morrer por primeiro na arena), ela é também a exótica e inusitada Lucy Gray Bird (a maravilhosa Rachel Zegler, revelada por Spielberg em “Amor Sublime Amor”) que, já de início, chama a atenção do público com inesperados dotes de cantora (talento que a versátil Rachel possui de fato na vida real) e mostra-se mais selvagem e menos indefesa do que seu aspecto pode denunciar –durante a colheita, ela coloca uma serpente verdadeira dentro do vestido de um de seus desafetos (!).

Por instinto, Snow compreende que tem ali uma participante capaz de monopolizar as atenções dos patrocinadores, desde que consiga, trabalhando furtivamente nos bastidores, mantê-la viva –e para tanto, ele sabe que deve, além de tudo, conter o ímpeto quase homicida existente nas ideias sempre mortais engendradas pela idealizadora dos jogos, Dra. Volumnia Gaul (Viola Davis, mais sinistra do que nunca).

Assim, “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, o livro, e agora o filme que dele resultou, encontram um diferencial interessante justamente ao abordarem os mesmos “Jogos Vorazes” mostrados antes –aqui porém com um viés mais arcaico, mais similar à brutalidade dos gladiadores romanos –só que valendo-se, também, do ponto de vista de um protagonista posicionado, não no centro dos enfrentamentos caóticos, como Katniss, mas do outro lado dos acontecimentos, por trás das câmeras, testemunhando as equipes de bastidores em suas deliberações e manipulações; e não raro, participando delas, também.

Ao contrário do que poderíamos supor, Coriolanus Snow é, sim, um personagem bastante interessante, por razões inesperadas que os realizadores souberam preservar com nitidez: Porque no início de sua história, ele ainda tem intenções ambíguas o bastante para afastar-se da pecha desagradável de vilão; porque a química (e o passível romance) com Lucy Gray Bird funciona às mil maravilhas (e ela própria se revela uma personagem tão forte e carismática quanto Katniss); porque Tom Blyth entrega uma atuação suficientemente profunda, habilidosa e identificável para se impor como um ótimo protagonista durante todo o (longo) filme; e finalmente, porque o diretor Francis Lawrence soube reconhecer todos esses elementos e enfatizou-os em sua narrativa, contando a história da maneira como ela necessitava ser contada.

“A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, é bem verdade, padece de uma forte subtração de ritmo em seu terço final, quando a trama vai além do conflito na arena e se mostra mais prolongada do que poderia ter sido –e esse é, deveras, um lapso que também o filme acaba herdando do livro –contudo, há tanta convicção no trabalho belíssimo de Francis Lawrence, tantos instantes de brilhantismo a serem apreciados em seu talentoso elenco, e tanto fulgor na possibilidade do roteiro se debruçar sobre características não tão exploradas na mitologia de “Jogos Vorazes” que as possíveis ressalvas sobre esta obra se revelam pálidas diante de suas radiantes qualidades finais.

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