domingo, 12 de novembro de 2023

Oppenheimer


 O cinema de Christopher Nolan sempre foi uma junção imprevista de gêneros comerciais. Ação e espionagem com thriller onírico em “A Origem”. Ficção científica em larga escala e drama familiar em “Interestelar”. Adaptação de histórias em quadrinhos com referência ao policial setentista em “Cavaleiro das Trevas”. Suspense rocambolesco com filme de época em “O Grande Truque”, e assim por diante. Há uma nova mescla em “Oppenheimer” e, na habilidade melindrosa e na insuspeita elegância com que tudo é feito, isso é um pouquinho mais difícil de ser dissecado.

Como sempre, no interesse irreprimível por seus personagens e suas trajetórias, Nolan distorce, torce e retorce o tempo a fim de acompanhar, justapor e refletir as várias etapas de suas vidas. “Como se resume toda uma vida?” é uma pergunta que surge, mais de uma vez, já na primeira parte de “Oppenheimer”. Nolan parece usar de seu filme para afirmar que tal feito não é virtualmente possível. Seu protagonista é J. Robert Oppenheimer (vivido com solidez metódica e competência instintiva por Cillian Murphy), o ‘pai da bomba atômica’. E quando o encontramos, Nolan o mostra contrapondo duas situações distintas no tempo. Em 1954, quando foi intimado a uma audiência de segurança pela Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos (AEC), e logo depois, já na qualidade de pivô para uma audiência posterior no senado norte-americano, a fim de confirmar a neutralização de sua influência política, a envolver o Almirante Lewis Strauss (Robert Downey Jr., brilhante).

O Almirante Strauss, aliás, quando surge, quase sempre nos momentos fundamentais da segunda metade da trama, parece protagonizar um outro filme à parte –e não à toa, suas cenas são mostradas por Nolan em preto & branco, numa forma de diferenciar, seus segmentos dos demais, protagonizados por Oppenheimer. Ademais, essas duas sequências de audiência (a da AEC, em cores, e a do Senado, em preto & branco) são duas circunstâncias de julgamento, onde estão em pauta questões morais que só chegaram a pesar de verdade anos depois da gênese desconcertante da bomba atômica, e do poder destrutivo que ela, por fim, revelou ao mundo. Em algum momento, desse fluxo narrativo –que Nolan converte num turbilhão de informações tecnicamente pesadas até deliberadamente harmonizar seu ritmo, num esforço de acompanhar a mente inquieta de seu personagem –o filme começa a contar, de modo um pouco mais linear, a história de Oppenheimer: Estudante de Física Quântica na Europa, onde acompanhou com entusiasmo as palestras do cientista Niels Bohr (Kenneth Brannagh), em meados da década de 1920, Oppenheimer ficou conhecido por sua dedicação e tenacidade nos círculos acadêmicos da Alemanha e da Suíça antes de voltar aos EUA, na tentativa de levar as arrojadas pesquisas no campo quântico para as universidades norte-americanas. Em Berkeley, na Califórnia, ele conhece o Prof. Ernest Lawrence (Josh Hartnett), ao lecionar no Instituto de Tecnologia, época em que suas primeiras inclinações políticas de esquerda aparecem: Ele incentiva alunos e professores para a criação de um Sindicato que representasse a categoria, e envolve-se com a ativista do Partido Comunista Jean Tatlock (Florence Pugh) para depois casar-se com a ex-comunista Kitty Puening (Emily Blunt).

Em 1942, com a Segunda Guerra Mundial em curso, e com os norte-americanos alarmados com as pesquisas avançadas em fissão nuclear dos cientistas alemães, o governo dos EUA, representado pelo General Leslie Groves (Matt Damon) convida o Dr. Oppenheimer a liderar o Projeto Manhattan com a complicada missão de ultrapassar os esforços alemães e chegar na frente da corrida armamentista para construir a primeira bomba atômica. Para tanto, Oppenheimer faz exigências inusitadas aos militares: constrói toda uma cidadezinha do zero, com infraestrutura e tudo, no vale amplo e deserto de Los Álamos, para abrigar os vários departamentos de produção que ele iria administrar a fim de que as pesquisas quânticas avançassem sem os empecilhos da sempre –como a distância dos familiares, por exemplo –e (a exigência mais difícil para o Exército Norte-Americano), fazer vista grossa às tendências comunistas deste ou daquele cientista, tido por Oppenheimer como fundamental ao projeto. Sua equipe incluía o abnegado Edward Teller (o também diretor Ben Safdie), ferrenho defensor do desenvolvimento da bomba de hidrogênio, o cauteloso e criterioso Isidor Isaac Rabi (David Krumholtz, de “Roda Gigante”), o pesquisador Enrico Fermi (Danny Deferrari) e o atencioso David L. Hill (Rami Malek).

Nos anos tumultuados entre o desenvolvimento do projeto e a criação de fato da bomba, muitas coisas acontecem –os alemães são derrotados, restando somente a oposição bélica dos japoneses no Pacífico; o presidente Dwight Eisenhower, responsável pelo início do Projeto Manhattan, morre e é substituído por Harry S. Truman (vivido por Gary Oldman); e Jean Tatlock suicida-se na banheira de sua casa –contudo, no dia 16 de julho de 1945, os esforços de Oppenheimer e sua equipe numerosa culminam no Teste Trinity, realizado num campo deserto, nas proximidades de Alamogordo, provando a viabilidade da bomba atômica, e seu poder descomunal de destruição. Na sequência, as cidades japonesas de Hiroshima e Nagazaki são escolhidas para serem os alvos da bomba, encerrando, por fim, as hostilidades da Grande Guerra.

Entretanto, os transtornos de Oppenheimer estavam longe de terminar. Quando ele –movido por temores anteriores ao Projeto Manhattan, discutidos com o sensato Prof. Einstein (Tom Conti), de que a bomba atômica seria um perigo para o mundo caso não houvesse colaboração entre as nações –busca restringir novos avanços na pesquisa de energia nuclear para fins bélicos, ele logo deixa de ser uma celebridade para, aos olhos do governo, se tornar uma figura discordante com os preceitos da Guerra Fria contra União Soviética que então se precipitou no horizonte, o que o leva à audiência de segurança da AEC, cujos depoimentos e interrogatórios (todos posicionados como ganchos pontuais dos flashbacks do roteiro), visaram descobrir as relações comunistas mantidas por Oppenheimer.

Nesse manejo assombroso que executa de uma ampla, complexa e nada simples história real e no vocabulário tecnicamente complexo que seu roteiro abraça, Nolan uma vez mais realiza cinema de gente grande, desta vez, mesclando um resgate urgente e necessário de um registro histórico imprescindível com sua evidente paixão por expedientes de suspense; Ao alterar a cronologia dos eventos como são mostrados, ele transforma a última hora (das nada modestas três que o filme possui!) num verdadeiro thrilher de mistério, para então, ao fim, regressar à intimista reflexão com Albert Einstein, e deixar o público reflexivo com as sombrias (e muito reais) possibilidades da trajetória humana.

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