quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Roda Gigante

Uma vez mais Woody Allen investe seu vigor criativo numa trama que remete à dramaturgia do teatro clássico em todas as suas imbricações. Uma vez mais, ele toma deliberadamente Nova York como cenário e, à sua maneira, como personagem.
E uma vez mais, contra todas as probabilidades, ele consegue disso extrair algo novo.
“Roda Gigante” remete à “Uma Rua Chamada Pecado”, texto clássico de Tennesse Williams que já havia se mostrado caro à sua filmografia (entre outros exemplares de sua obra, “Blue Jasmine”, com Cate Blanchett, também é profundamente referencial), e como lá, Woody Allen trabalha, numa linguagem frequentemente teatral, as tensões, humores e reviravoltas de natureza íntima a transcorrer entre quatro distintos personagens.
A trama parece capturar um microcosmos emoldurado pela Coney Island dos anos 1950, e nessa ambientação algo exótica –da qual Allen tira proveito em diversos momentos –encontramos Ginny (Kate Winslet) , um ex-atriz e atual garçonete de uma lanchonete de ostras local, a ostentar uma melancolia pulsante muito similar à de uma Blanche Dubois.
Ginny é casada com Humpty (Jim Belushi, expressando alegria genuína em cena), e seu matrimônio se equilibra entre as parcas opções, a gratidão por ele tê-la aceito e ao seu filho, e a insatisfação de Ginny agravada pela sombra do alcoolismo, que Humpty largou, mas sempre ameaça voltar.
À essa rotina de insatisfação de classe-média soma-se a presença de Carolina (Juno Temple), filha de Humpty que surge em Coney Island fugindo de um casamento tumultuado com um mafioso violento (cujos capangas ainda estão por aí a procurá-la!). Embora afastada do pai a anos, Carolina é recebida por Humpty com ternura renovada –o que coloca a já ressentida Ginny em segundo plano aos olhos do marido.
Ginny não suporta Carolina. Humpty, porém, a perdoa, a acolhe e a ama. Ainda assim, Carolina se esforça para estabelecer com Ginny uma relação harmoniosa, em vão.
Woody Allen não explora essa dinâmica minuciosamente teatral por muito tempo: Ele logo introduz um outro personagem, bastante desestabilizador para com as delicadas relações que surgem. Na verdade, introduzir é uma palavra pouco apropriada, já que Mickey (Justin Timberlake) vinha narrando o filme desde o seu começo –e, como numa espécie de alter ego do próprio Allen, ele quebra a quarta parede o tempo todo para conversar com a câmera.
Salva-vidas da região e aspirante à dramaturgo, Mickey se torna amante de Ginny, e permite a ela vislumbrar um futuro melhor longe da mediocridade imposta pelo casamento com Humpty. No entanto, ao conhecer Carolina, jovem como ele, Mickey sente a chama da paixão acender-se de verdade, e na constatação da predileção dele pela garota, Ginny vê seu idealizado castelo de areias se desmoronar.
Longe de integrar os grandes trabalhos da carreira de Woody Allen, mas ainda assim pleno de méritos a serem observados, “Roda Gigante” é uma renovação de seu imenso apreço pelo teatro nova-iorquino, e um testemunho da genialidade na direção de fotografia de Vittorio Storaro (de “O Céu Que Nos Protege”) que captura a artificialidade de alguns momentos alterando filtros de câmera e iluminação, envolvendo cenas em súbitas cores quentes e caprichosas que refletem estados de espírito dos personagens, enunciam os rumos trágicos tomados pela trama e rompem com uma estrutura mais teatral que poderia engessar a narrativa dando a ela insondáveis significados cinematográficos.
É coisa até demais para um ‘Woody Allen menor’.

Nenhum comentário:

Postar um comentário