sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Carne Trêmula

A arrematar este trabalho do espanhol Pedro Almodovar (para muitos, uma de suas melhores obras nos anos 1990) temos duas cenas de parto, uma em seu prólogo, outra em seu epílogo. Vem a ser uma daquelas realizações características de Almodovar nas quais ele não permite que fiquemos indiferentes: “Carne Trêmula” é exultante na análise das mazelas sentimentais ao evidenciá-las como uma fratura exposta, e por conta disso, é uma obra para se amar, ou para se odiar.
Quem sabe esta tenha sido a fase mais resplandecente da carreira de Pedro Almodovar –suas obras imediatamente anteriores à consagração junto ao Oscar por “Tudo Sobre Minha Mãe” –embora também depois tivessem havido trabalhos incontestáveis (“Volver” e “Fale Com Ela” não me deixam mentir). A segunda metade dos anos 1990 parece ter alcançado Almodovar com uma disposição e uma capacidade então inédita para conciliar suas inquietações artísticas com a reciprocidade do circuito comercial.
Assim como em “Ata-Me”, estamos diante de um filme onde o amor e a obsessão (e o triângulo amoroso daí originado) ocupam regiões tão nebulosas que, nas dinâmicas reveladas, se faz difícil distinguir um do outro: Há David, o homem apaixonado e objeto da paixão da mulher (mas, confinado à cadeira de rodas que o faz impraticável para o amor); há Victor, o homem apaixonado injustiçado pelo papel de deflagrador involuntário de todo o drama (e responsável assim pelo outro estar numa cadeira de rodas); e há Elena, a mulher, pivô de toda essa celeuma a definir a dicotomia entre os personagens.
Essa mulher, Elena (a belíssima Francesca Neri) parece ter mexido com a cabeça de Victor (Liberto Rabal), o jovem cujo nascimento testemunhamos no princípio do filme, nos anos 1970 (onde vislumbramos também uma ponta de Penelope Cruz antes da fama mundial).
Passados vinte anos, Victor tenta dar um sentido à sua vida da única forma que compreende ser válida: Trazendo para junto de si seu grande amor, que ele crê ser Elena, a quem ele rastreia em Madri por meios de brilhantes subterfúgios elaborados pelo roteiro de Almodovar.
Quando se encontram, podemos entender a distinção das impressões subjetivas que definem (e desconstroem) o amor no cinema de Almodovar em geral: Para Victor, ela é tudo –sua primeira vez, e por conseguinte, o amor de sua vida. Para Elena, ele não é nada –ela mal se recorda do interlúdio com ele o qual enxergou como uma relação casual (!).
Galgando a situação para um cenário passional inerente aos arroubos espanhóis, Elena e Victor chegam a lutar por uma arma de fogo quando ela deduz que ele, em sua insistência, passou dos limites. Policiais são chamados –o honrado David (vivido por Javier Barden, a outra ponta desse triângulo amoroso) e seu dúbio parceiro Sancho (José Sancho).
Na confusão que se segue, David termina baleado e paralítico –o que leva Elena a viver com ele alimentando uma espécie de amor platônico baseado na gratidão –enquanto Victor é condenado a seis anos de prisão.
Quando esse tempo passa e Victor é posto em liberdade, o diretor rearranja as relações dos personagens, modificando mais uma vez suas dinâmicas em sua notável inquietude sentimental.
Almodovar impõe a si próprio aqui um desafio consideravelmente maior que em seus outros trabalhos normalmente mais amenos e básicos do ponto de vista da elaboração da premissa, incluindo seu oscarizado “Tudo Sobre Minha Mãe”: Tão embevecidas de complexidade são as relações que se estabelecem entre os personagens que nem conseguimos presumir para qual intento deverá pender sua notória capacidade de manipulação.
Parte de “Carne Trêmula” é composto por fetiches minuciosos como a disputa velada de virilidades entre os protagonistas (numa contradição brilhante que opõe um macho alfa inválido à um garoto sexualmente funcional, mas relutante e assustado) e, sobretudo, o elemento que mais agrada Almodovar (e que ele dedicou muitos de seus trabalhos a contemplar), o protagonista falho e imperfeito, representativo dos piores lapsos até, mas, que no contexto e na circunstância que se constroem encontra meios de ser o amante heróico, o príncipe encantado.
Dentre todas as transgressões visuais e temáticas atribuídas à Almodovar (todas bem mais evidentes) é essa (muito mais sutil) à qual ele parece dar mais apreço.

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