A arrematar este trabalho do espanhol Pedro
Almodovar (para muitos, uma de suas melhores obras nos anos 1990) temos duas
cenas de parto, uma em seu prólogo, outra em seu epílogo. Vem a ser uma daquelas
realizações características de Almodovar nas quais ele não permite que fiquemos
indiferentes: “Carne Trêmula” é exultante na análise das mazelas sentimentais
ao evidenciá-las como uma fratura exposta, e por conta disso, é uma obra para
se amar, ou para se odiar.
Quem sabe esta tenha sido a fase mais
resplandecente da carreira de Pedro Almodovar –suas obras imediatamente
anteriores à consagração junto ao Oscar por “Tudo Sobre Minha Mãe” –embora
também depois tivessem havido trabalhos incontestáveis (“Volver” e “Fale Com Ela” não me deixam mentir). A segunda metade dos anos 1990 parece ter alcançado
Almodovar com uma disposição e uma capacidade então inédita para conciliar suas
inquietações artísticas com a reciprocidade do circuito comercial.
Assim como em “Ata-Me”, estamos diante de um
filme onde o amor e a obsessão (e o triângulo amoroso daí originado) ocupam
regiões tão nebulosas que, nas dinâmicas reveladas, se faz difícil distinguir
um do outro: Há David, o homem apaixonado e objeto da paixão da mulher (mas,
confinado à cadeira de rodas que o faz impraticável para o amor); há Victor, o
homem apaixonado injustiçado pelo papel de deflagrador involuntário de todo o
drama (e responsável assim pelo outro estar numa cadeira de rodas); e há Elena,
a mulher, pivô de toda essa celeuma a definir a dicotomia entre os personagens.
Essa mulher, Elena (a belíssima Francesca Neri)
parece ter mexido com a cabeça de Victor (Liberto Rabal), o jovem cujo
nascimento testemunhamos no princípio do filme, nos anos 1970 (onde
vislumbramos também uma ponta de Penelope Cruz antes da fama mundial).
Passados vinte anos, Victor tenta dar um
sentido à sua vida da única forma que compreende ser válida: Trazendo para
junto de si seu grande amor, que ele crê ser Elena, a quem ele rastreia em
Madri por meios de brilhantes subterfúgios elaborados pelo roteiro de
Almodovar.
Quando se encontram, podemos entender a
distinção das impressões subjetivas que definem (e desconstroem) o amor no
cinema de Almodovar em geral: Para Victor, ela é tudo –sua primeira vez, e por
conseguinte, o amor de sua vida. Para Elena, ele não é nada –ela mal se recorda
do interlúdio com ele o qual enxergou como uma relação casual (!).
Galgando a situação para um cenário passional
inerente aos arroubos espanhóis, Elena e Victor chegam a lutar por uma arma de
fogo quando ela deduz que ele, em sua insistência, passou dos limites.
Policiais são chamados –o honrado David (vivido por Javier Barden, a outra
ponta desse triângulo amoroso) e seu dúbio parceiro Sancho (José Sancho).
Na confusão que se segue, David termina baleado
e paralítico –o que leva Elena a viver com ele alimentando uma espécie de amor
platônico baseado na gratidão –enquanto Victor é condenado a seis anos de
prisão.
Quando esse tempo passa e Victor é posto em
liberdade, o diretor rearranja as relações dos personagens, modificando mais
uma vez suas dinâmicas em sua notável inquietude sentimental.
Almodovar impõe a si próprio aqui um desafio
consideravelmente maior que em seus outros trabalhos normalmente mais amenos e
básicos do ponto de vista da elaboração da premissa, incluindo seu oscarizado
“Tudo Sobre Minha Mãe”: Tão embevecidas de complexidade são as relações que se
estabelecem entre os personagens que nem conseguimos presumir para qual intento
deverá pender sua notória capacidade de manipulação.
Parte de “Carne Trêmula” é composto por
fetiches minuciosos como a disputa velada de virilidades entre os protagonistas
(numa contradição brilhante que opõe um macho alfa inválido à um garoto
sexualmente funcional, mas relutante e assustado) e, sobretudo, o elemento que
mais agrada Almodovar (e que ele dedicou muitos de seus trabalhos a
contemplar), o protagonista falho e imperfeito, representativo dos piores
lapsos até, mas, que no contexto e na circunstância que se constroem encontra
meios de ser o amante heróico, o príncipe encantado.
Dentre todas as
transgressões visuais e temáticas atribuídas à Almodovar (todas bem mais
evidentes) é essa (muito mais sutil) à qual ele parece dar mais apreço.
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