segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Todo O Dinheiro do Mundo


 Sempre houve uma espécie de ênfase no materialismo presente no cinema de Ridley Scott; vindo da área da publicidade –onde a estética predominante sempre teve mesmo essa orientação –Scott vislumbrou, em filmes como “Alien”, “Blade Runner” ou “Gladiador”, os adereços visuais do mundo que cerca seus protagonistas, e que em grande medida os define. Claro que ele vislumbrava outras coisas também e, para aliviar sua barra, desde “Thelma & Louise”, Scott soube cada vez mais salientar as particularidades de uma bela história.

Em “Todo O Dinheiro do Mundo”, Ridley Scott, como quase todo bom autor de cinema, parece esforçar-se para fazer as pazes com mais essa inquietação, um exorcismo de seus demônios pessoais, e para efetuar tal gesto, Scott escolhe uma história real: A desastrosa e trágica trajetória da Família Getty. Girando em torno de seu patriarca, Jean Paul Getty (Christopher Plummer, soberbo), o filme coloca em foco a ambição e o conflito moral, ocasionado de raras e improváveis circunstâncias, entre o empuxo pessoal e ególatra que leva os homens à ascender e o discernimento ético do juízo de valor.

Se o livro original de John Pearson dedica um tempo desmedido para relatar a história de vida (e de riqueza) de Jean Paul Getty, sedimentando assim sua personalidade talhada em meio à rudeza das negociações bilionárias (algo como um William Randolph Hearst, de “Cidadão Kane”, filme que exerce tremenda influência espiritual neste daqui), o roteiro de David Scarpa é sucinto, indo com muito mais objetividade ao evento central da trama: O sequestro, em 1973 na itália, de Paolo Getty (Charlie Plummer, que NÃO tem nenhum parentesco real com Christopher!), o neto de J. Paul Getty, filho de Gail Harris (Michelle Williams, sempre maravilhosa) e de J.P. Getty Jr. (Andrew Buchan), filho de Getty.

Os sequestradores, um grupo comunista com desespero estampado no rosto, pedem 17 milhões de dólares como resgate à mãe de Paolo. Apesar da fama da família, Gail era uma mera dona de casa de classe média –o verdadeiro bilionário era seu sogro que relutava em dividir sua fortuna com qualquer um. Mesmo o próprio filho, J.P. Getty Jr., acabou trabalhando com o pai depois de adulto, após anos de indiferença, somente para viciar-se em drogas e virar uma marionete nas mãos do pai, servindo aos seus propósitos para tirar os netos da guarda de Gail.

Getty rechaça publicamente o pedido de resgate afirmando que não irá pagar valor algum no sequestro, entretanto, por baixo dos panos, chama um de seus mais hábeis negociadores, o ex-agente secreto e especialista em segurança Fletcher Chase (Mark Wahlberg), para tentar resolver o mais rápido (e barato!) possível a situação na Itália, na qual a polícia local, a cannabieri, apenas exerce sua incompetência.

Inicialmente, as investigações de Chase esbarram na possibilidade de que o sequestro possa ter sido cogitado pelo próprio Paolo –e nessa esteira, as assombrosas richas e mesquinharias envolvidas nas relações de J. Paul Getty com seus familiares vão se descortinando –contudo, a medida que a situação vai se tornando mais alarmante –Paolo, refém real num caso de sequestro real, acaba vendido para um mafioso italiano (Marco Leonardi) quando os comunistas se fartam da situação de impasse, escapa num terminado momento, mas é devolvido aos seus algozes por policiais corruptos, até que tem sua orelha direita amputada –Chase vai se dando conta da posição aflitiva e desamparada de Gail e do inacreditável descaso do Velho Getty.

Um dado curioso a respeito do filme, realizado durante a celeuma de denúncias de abuso sexual que dominou Hollywood em meados de 2017, é que “Todo O Dinheiro do Mundo” tinha, em princípio, o ator Kevin Spacey escalado como J. Paul Getty. Acusado de assédio e com a carreira, até então, seriamente comprometida, Spacey foi afastado da produção, e substituído por Christopher Plummer que, como é de hábito, entregou um trabalho sublime –seja pela excelência de sua performance, seja para apoiar o gesto de cancelamento de um abusador em potencial, no qual foi necessário refazer grande parte do filme devido à troca de intérpretes, a Academia de Artes Cinematográficas indicou Plummer ao Oscar 2018 de Melhor Ator Coadjuvante. Plummer compõe um homem incapaz de confiar nos seres humanos à sua solta, paranóico, demasiadamente ciente do interesse geral em sua vasta fortuna, e seu excesso de preocupação o leva a atitudes tão excêntricas quanto amorais –e nesse sentido, Ridley Scott não se furta de emoldurá-lo, como o protagonista do já citado “Cidadão Kane”, num casulo de riqueza: Getty é sempre mostrado em sua mansão com paredes abarrotadas de obras de arte, vestindo ternos finos, e sempre exibindo, ostentando ou exprimindo um luxo abundante, em contrapartida ao fato existencial onde se revela incapaz de abrir mão de uma fração desse luxo, ou em última instância, de abrir mão de qualquer coisa.

“Todo O Dinheiro do Mundo” reúne então diversas facetas a serem contempladas: É um filme cujos bastidores refletiram, à sua maneira, as mudanças imprevistas desses novos tempos, e, do ponto de vista de seu realizador, oferece um oportunidade para resgatar suas inspiração, sua temática incomum e as referências de seu estilo. Apesar disso tudo, a conclusão pesarosa das inacreditáveis falhas morais que a ganância pode exercer no caráter humano (um mote que o relaciona, também, ao clássico “O Tesouro de Sierra Madre”) leva a uma obra que deixa uma impressão amarga no expectador.

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