quarta-feira, 23 de março de 2022

O Mensageiro do Diabo


 Dos mais desiguais e singulares registros do amedrontamento, da opressão e da insegurança já feitos, a única direção do consagrado ator Charles Laughton indicava um diretor de observações expressionistas, preocupado com uma simbologia moral e com pertinentes códigos da linguagem cinematográfica.

A trama que emoldura essa narrativa tão particular é, também ela, de um sarcasmo que a faz incomum: Saído de uma penitenciária, onde cumpriu pena pelo criminoso maníaco que é, o personagem Harry Powell, de Robert Mitchum –vilão absolutamente icônico, com as palavras “amor” e “ódio” tatuadas em cada uma das mãos –esconde muito bem sua real natureza, tal qual o mais hábil dos predadores: Para a viúva e carente Willa Harper (Shelley Winters), ele se mostra como um solícito, disponível e amoroso pastor religioso.

Seu plano, contudo, é sórdido: Harry deseja tão somente reaver a quantia em dinheiro roubada pelo falecido marido de Willa, e companheiro de cela (bem como confidente) de Harry, que ele, antes de morrer, escondeu; e cuja localização somente a garotinha Pearl (Sally Jane Bruce) sabe. Ela que é filha de Willa.

É, portanto, Pearl, ao lado de seu irmão um pouco mais velho John (Billy Chapin), quem assume, de fato, o protagonismo do filme diante de um antagonista assim tão ameaçador. E nessa impecável construção, o filme de Laughton é todo clima; cena após cena, o diretor brinca de subverter os anseios convencionais da plateia, de compor momentos antológicos (alguns referenciados em obras da cultura pop até os dias de hoje) e de tecer, através dessas pequenas variações, uma obra palpitante e surpreendente sobre perseguição, vilania e destemor.

Os tópicos que Laughton emprega em “O Mensageiro do Diabo” são, no mínimo, curiosos. Aqui e ali, ele planta referências bíblicas que, gradualmente e até mesmo inconscientemente, vão agregando ares épicos à sua narrativa. Os valores em questão dizem respeito ao zelo pelas crianças –aqui retratadas com um desamparo desconcertante que era inédito do cinema daquela época –à concepção volátil do papel das mulheres (na primeira parte do filme, mostradas com a indulgência e a visão embaçada por sentimentos domésticos triviais pela personagem de Shelley Winters, logo descartada; na segunda parte, porém, resgatadas dessa mediocridade pela perseverante, obstinada e supina personagem da grande Lilian Gish), mas, acima de tudo, “O Mensageiro do Diabo” é sobre a potencialidade na identificação do mal. Expectadores que somos, tão habituados –às vezes até mesmo pela simplicidade lúdica imposta pelo próprio cinema em seus formatos mais comerciais –com o retrato imediatamente relacionável e perceptível de uma maldade feia, reprovável e cristalina, não nos damos conta de que, na grande maioria das vezes, esse mesmo mal se traveste de bondade, da mais enganosa virtude, para corromper e rondar as almas mais ingênuas, e delas proveito para, no hora certa, traí-las.

Esta grande produção de Charles Laughton vem nos lembrar, com suas cenas inesquecíveis, seus personagens primorosos e seus enredo tão objetivo quanto poderoso, que não importa como se apresente, o mal, verdadeiro e real, sempre espreita os inocentes, cabendo aos lúcidos, de bom caráter e boa vontade, saber identificá-lo e principalmente saber se posicionar com retidão para defendê-los.

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