sexta-feira, 25 de março de 2022

Um Beijo Roubado


 “My Blueberry Nights” é a sôfrega tentativa de Won Kar Wai transpor seu estilo preciosista para terras e linguagens norte-americanas, ou seja, falado em inglês, ambientado em solo americano e estrelado por elenco hollywoodiano.

O próprio Kar Wai, no entanto, parece esquecer que muito de suas obras surge do improviso, da percepção instintiva dos sentimentos a pairar sobre seus personagens, da forma orgânica com que estão inseridos em seu contexto, e da atenção minimalista para com pequenos dramas de natureza intimista que ali são apanhados.

Ao aceitar filmar nos EUA –e possivelmente embolsar um belo cachê por isso –Kar Wai aceita algo que não é de sua natureza: Ele pasteuriza, empacota e industrializa um produto antes feito com instinto e espontaneidade, e nesse processo, perde tudo que faz dele único.

Quando inicia-se, “My Blueberry Nights” já começa com predisposições convencionais: Após a inevitável angústia de um rompimento, a jovem Elizabeth, ou Lizzy (a cantora Norah Jones), se descobre envolvida com Jeremy (Jude Law), proprietário de um café; no processo de sedução despido de diálogos que se segue, ele rouba um beijo de Lizzy, ela aparentemente desacordada sob o balcão –a cena que não somente fornece o título nacional como também ilustra o poster original do filme, ainda que ela nunca pareça ter um peso genuíno sobre a trama.

Não há uma explicação mais evidente para a decisão posterior de Lizzy em partir numa viagem pelos EUA –reencontrar a si mesma, talvez? Descobrir novas nuances do amor que teme abraçar? –e, de repente, nem os próprios realizações tivessem intenção de responder a essa pergunta. Nessa imprecisão, infelizmente, o filme de Kar Wai segue claudicante e, como era de se esperar, em seu road movie particular Lizzy se defronta com diferentes facetas do amor e de suas consequências, algo que, na pretensão da narrativa, deveria servir de reflexo indireto do próprio amor que Lizzy pode assumir ou não com Jeremy, mas que não são mais que manobras cheias de presunção onde Kar Wai, em maior e menor grau, recria em solo americano, as celeumas sentimentais que ele soube tratar com muito mais profundidade em Hong Kong.

Nessa esteira de coadjuvantes que transcorrem como atrações no palco de um show de auditório, Lizzy conhece Leslie (Natalie Portman, fabulosa), uma jogadora inveterada em Las Vegas, bem como uma mentirosa compulsiva –um reflexo desconfortável da desonestidade da própria Lizzy; o casal apaixonado Sue (Rachel Weizs) e Arnie (David Strathaim) cuja união se vê frequentemente fragmentada pelo alcoolismo dele; e muitos outros, onde temos a oportunidade de testemunhar um desfile fenomenal de grandes nomes do cinema americano, claramente atraídos pelo interesse de trabalhar com o grande diretor de “Amores Expressos”.

Um esforço do próprio Won Kar Wai em encontrar nos cenários coloquiais dos EUA um ambiente favorável para suas intrigas de amor, “My Blueberry Nights” é lindo em sua identidade visual –a direção de fotografia leva a assinatura de dois mestres da área, Darius Khondji (de “Seven-Os Sete Crimes Capitais”) e Kwan Pung-Leung (de “Buenos Aires Zero Degree” e “2046-Os Segredos do Amor”) –no entanto, falha na captura de uma impressão específica no retrato de uma América perpetrada por um estrangeiro, como Win Wenders fez tão bem em “Paris, Texas”, ou Louis Malle em “Atlantic City”. Da forma como aqui se expressou, Won Kar Wai muito pouco entendeu dos EUA –e em última instância, muito pouco teve de vontade de entender –o que torna o retorno de Lizzy, ao fim do filme, para os braços de Jeremy, numa retomada da mesmíssima cena que compartilharam no início da sua jornada, uma conclusão bastante redundante acerca das vicissitudes do amor e da vida. um saldo complicado e nada promissor para uma obra que, como as demais de Won Kar Wai, se pretende avassaladoramente romântico e recompensador.

Após o engodo que foi essa experiência, Won Kar Wai voltou para sua Hong Kong natal, energizado de suas certezas tradicionais e do quanto sua identidade estava atrelada à sua própria terra. É justo, portanto, afirmar que foram os aborrecimentos vivenciados neste filme que o levaram a compor sua obra mais ambiciosa, “O Grande Mestre”.

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