sábado, 19 de novembro de 2016

2046 - Os Segredos do Amor

Quem conhece a filmografia do talentoso Wong Kar-Wai sabe que ele se dedicou, em inúmeros trabalhos a tentar ilustrar as muitas e dolorosas facetas do amor, esse sentimento que ora define, ora transfigura o ser humano.
O amor foi o tema de Kar-Wai em um de seus melhores trabalhos, “Amor À Flor da Pele” (do qual este “2046” pode ser considerado uma continuação). O amor, aliás, surge como impulso até mesmo na biografia de Ypman, “O Grande Mestre”, um trabalho que, em teoria, levaria Kar-Wai a abordar outros assuntos, por razões práticas.
Mas, falemos então desta obra aqui: O sempre magnífico Tony Leung interpreta um escritor (sim, o mesmo de “Amor À Flor da Pele”), cuja frustração amorosa –certamente, a ocorrida no filme anterior –o leva a refugiar-se num hotel barato, onde ele  busca o quarto de número 2046 (e, também isso é um fato que podemos conferir acontecendo naquele filme!), que lhe inspira lembranças agridoces: Foi lá que hospedou-se uma mulher que ele conheceu. O quarto, contudo, se encontra indisponível (a tal mulher cometeu, dentro dele, suicídio), e ele tem de contentar-se em ocupar o quarto vizinho, o 2047.
Uma vez instalado lá, outras mulheres parecem orbitar sua vida e movimentar sua condição amorosa, enquanto busca escrever seu livro, também ele de nome 2046 (!).
Logo, surge a mulher interpretada por Gong Li (a mesma personagem usada por Kar-Wai em seu curta-metragem “The Hand”, que compunha a coletânea “Eros”), jogadora profissional e perita em esconder as emoções. Fascinado por ela, ele tenta em vão uma aproximação, mas tudo o que faz é disfarçar casualidade de amor
Outra mulher vem a ser a nova inquilina do 2046, interpretada por Zhang ZiYi, com quem ele logo estabelece uma afinidade física sob a condição de que mantenha-se um desligamento emocional. Mas ambos acabarão por quebrar essa promessa.
Juntos, eles disfarçam o amor de casualidade.
Assim, o filme de Kar-Wai vai avançando, de maneira episódica, talvez a única forma de harmonizar todos os elementos que ele almejou mesclar aqui: “2046” nasceu de uma série de projetos que ele foi incapaz de concluir, ora por falta de financiamento, ora por uma súbita interferência criativa (seja ela externa ou interna). Ele queria fazer uma espécie de continuação de “Amor À Flor da Pele” –o quê este filme de certa maneira é, embora deixe essa característica logo de lado e nem mesmo tenha um encaixe cronológico satisfatório com aquele trabalho –assim como também uma ficção científica carregada de referências e de suas habituais inquietações; e essa faceta surge pouco depois que a personagem de Zhag ZiYi sai de cena, e a narrativa se concentra no livro que, afinal de contas, ele estava escrevendo naquele quarto de hotel.
No livro, 2046 é um ano, para o qual um trem futurista, capaz de se locomover não no espaço, mas no tempo, é transportado. Dentro dele, uma andróide sintética desperta para emoções que, supunha-se, eram exclusivamente humanas, enquanto dois jovens revolucionários buscam fugir de sua sina, numa trama tão confusa quanto fragmentada, fruto certamente da interrupção do projeto e seu reaproveitamento enigmático feito por Kar-Wai.
Indo e vindo entre linhas narrativas que se confundem, se fundem e se estilhaçam, o diretor concebe um trabalho fragmentado, no qual as emoções dilacerantes que compõem o grande cerne de sua obra representam o único fator constante.
“2046” se encerra deixando o expectador só e reflexivo, mas com uma experiência sensorial de tal forma dolorosa e fascinante que realmente deve se aproximar da noção muito particular que Wong Kar-Wai faz do amor.

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