Quem conhece a filmografia do talentoso Wong
Kar-Wai sabe que ele se dedicou, em inúmeros trabalhos a tentar ilustrar as
muitas e dolorosas facetas do amor, esse sentimento que ora define, ora
transfigura o ser humano.
O amor foi o tema de Kar-Wai em um de seus
melhores trabalhos, “Amor À Flor da Pele” (do qual este “2046” pode ser
considerado uma continuação). O amor, aliás, surge como impulso até mesmo na
biografia de Ypman, “O Grande Mestre”, um trabalho que, em teoria, levaria
Kar-Wai a abordar outros assuntos, por razões práticas.
Mas, falemos então desta obra aqui: O sempre
magnífico Tony Leung interpreta um escritor (sim, o mesmo de “Amor À Flor da
Pele”), cuja frustração amorosa –certamente, a ocorrida no filme anterior –o
leva a refugiar-se num hotel barato, onde ele
busca o quarto de número 2046 (e, também isso é um fato que podemos
conferir acontecendo naquele filme!), que lhe inspira lembranças agridoces: Foi
lá que hospedou-se uma mulher que ele conheceu. O quarto, contudo, se encontra
indisponível (a tal mulher cometeu, dentro dele, suicídio), e ele tem de
contentar-se em ocupar o quarto vizinho, o 2047.
Uma vez instalado lá, outras mulheres parecem
orbitar sua vida e movimentar sua condição amorosa, enquanto busca escrever seu
livro, também ele de nome 2046 (!).
Logo, surge a mulher interpretada por Gong Li
(a mesma personagem usada por Kar-Wai em seu curta-metragem “The Hand”, que
compunha a coletânea “Eros”), jogadora profissional e perita em esconder as
emoções. Fascinado por ela, ele tenta em vão uma aproximação, mas tudo o que
faz é disfarçar casualidade de amor
Outra mulher vem a ser a nova inquilina do
2046, interpretada por Zhang ZiYi, com quem ele logo estabelece uma afinidade
física sob a condição de que mantenha-se um desligamento emocional. Mas ambos
acabarão por quebrar essa promessa.
Juntos, eles disfarçam o amor de casualidade.
Assim, o filme de Kar-Wai vai avançando, de
maneira episódica, talvez a única forma de harmonizar todos os elementos que
ele almejou mesclar aqui: “2046” nasceu de uma série de projetos que ele foi
incapaz de concluir, ora por falta de financiamento, ora por uma súbita
interferência criativa (seja ela externa ou interna). Ele queria fazer uma
espécie de continuação de “Amor À Flor da Pele” –o quê este filme de certa
maneira é, embora deixe essa característica logo de lado e nem mesmo tenha um
encaixe cronológico satisfatório com aquele trabalho –assim como também uma
ficção científica carregada de referências e de suas habituais inquietações; e
essa faceta surge pouco depois que a personagem de Zhag ZiYi sai de cena, e a
narrativa se concentra no livro que, afinal de contas, ele estava escrevendo
naquele quarto de hotel.
No livro, 2046 é um ano, para o qual um trem
futurista, capaz de se locomover não no espaço, mas no tempo, é transportado.
Dentro dele, uma andróide sintética desperta para emoções que, supunha-se, eram
exclusivamente humanas, enquanto dois jovens revolucionários buscam fugir de
sua sina, numa trama tão confusa quanto fragmentada, fruto certamente da
interrupção do projeto e seu reaproveitamento enigmático feito por Kar-Wai.
Indo e vindo entre linhas narrativas que se
confundem, se fundem e se estilhaçam, o diretor concebe um trabalho
fragmentado, no qual as emoções dilacerantes que compõem o grande cerne de sua
obra representam o único fator constante.
“2046” se encerra deixando
o expectador só e reflexivo, mas com uma experiência sensorial de tal forma
dolorosa e fascinante que realmente deve se aproximar da noção muito particular
que Wong Kar-Wai faz do amor.
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