terça-feira, 12 de julho de 2022

Deadgirl


 Depois que se assiste “Deadgirl”, a luz do sol não traz mais conforto. Isso se deve pelo fato da trama abordar com um viés quase despreocupado a aflitiva questão do estupro.

Quando os jovens Rickie e J.T. (Shilo Fernandez, de “Evil Dead”, e Noah Segan) encontram uma jovem morta-viva acorrentada a uma mesa num hospital psiquiátrico abandonado, logo um pensamento doentio ocorre: J.T., rejeitado e desprezado pelas garotas de sua escola, enxerga na jovem zumbi a oportunidade para saciar seus anseios sexuais (!).

Fica assim a questão –para alguns despercebida devido ao assombro que os acontecimentos causam –se um zumbi não é um ser vivo, ele merece  as gentilezas prestadas a um ser vivo? E se não, o que ele é, já que afinal se move e exprime autonomia?

Na verdade, essas e muitas outras questões aparecem ao longo da premissa que explora a amoralidade que brota, sobretudo, a partir da avidez da juventude: Convertendo o local numa espécie de moradia sua, J.T. se torna, apesar de suas juras de amor à jovem zumbi, praticamente numa espécie de cafetão (!). Ele e um outro amigo, Wheeler (Eric Podnar), passam a abusar do corpo da ‘deadgirl’, estuprando-a –e, não raro, infligindo-lhe ferimentos horríveis, alguns até mortais. No transcorrer dos dias, se a decomposição e a violência promovem a deterioração do corpo –ainda que os lascivos e perversos adolescentes não deem qualquer atenção para isso (!!!) –a atitude dos jovens é usar de alguns artifícios para disfarçar a má impressão estética: Eles inicialmente tentam remendar a morta-viva para, enfim, colocar uma foto de outra mulher na cara dela (!).

Contudo, Rickie acaba sendo pressionado por dois valentões locais a revelar o que se passa com seus amigos. E isso só leva os abusadores da ‘deadgirl’ a crescer em número. Logo, os jovens do lugar fazem fila para aproveitar-se sexualmente da garota convertida em zumbi –e cada vez mais dilacerada fisicamente!

Entretanto, a dupla de diretores, o norte-americano Marcel Sarmiento e o israelense Gadi Harel, tem consciência de que toda a premissa a envolver um zumbi, em algum momento, chegará num ponto em que um lapso eventual deflagrará a inevitável catástrofe, e com a combinação desastrosa entre adolescentes, hormônios descontrolados e  circunstâncias delicadas, não haverá de ser diferente.

Capaz de provocar agonia impronunciável aos expectadores de paladar mais normal e razoável –pois visivelmente foi realizado com a intenção chocante de atender predisposições extremas dos aficcionados por filmes de terror –“Deadgirl” incomoda pela postura desprovida de empatia de seus personagens diante do abuso intermitente da jovem zumbi, interpretada por Jenny Spain, pelas cenas gráficas que não poupam nada, nem ninguém, pelo tom de despreocupado humor negro que perdura mesmo quando a trama atinge consequências aflitivas e inacreditáveis, e certamente pelo retrato, não muito longe da realidade, dos severos distúrbios morais acometidos nos jovens que são incapazes de enxergar um estupro –e a continuidade sistemática desse ato –pelo crime hediondo que ele é. A desesperança embutida nessa premissa é tamanha que a ironia cruel presente do desfecho de “Deadgirl” só vem a ratificá-la –quando Rickie, sobrevivente da carnificina de zumbis que eliminou boa parte dos envolvidos na trama, retoma sua rotina, feliz com o segredo de que a garota que era seu objeto de desejo agora é a nova ‘deadgirl’ a jazer, zumbificada e presa na mesa do hospital, à disposição de suas vontades sexuais.

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