sábado, 22 de outubro de 2022

Alice


 A realização do diretor Jan Svankmajer segue intrigante, ostentando o mesmo clima de estranheza melancólica e diferenciação autoral que já a distinguia quando foi lançada num longínquo 1988. Partindo da obra de Lewis Caroll, “Alice No País das Maravilhas”, Svankmajer cria uma distorção do livro, uma variação infiel, traquina e comprometida com as impressões filosóficas subliminares que sempre fizeram sua razão de ser.

A menina Kristyna Kohoutová é Alice –ou assim presumimos que seja, uma vez que poucas informações são dadas ao expectador –e, solitária no que parece ser o quarto de sua casa, ela descobre que o coelha branco, empalhado numa caixa de vidro em um dos cômodos, criou vida (!). O coelho –animado por uma técnica hoje arcaica de stopmotion, na verdade, a área de especialização de Svankmajer –livra-se dos pedestais que o prendem e, embora fique o filme todo vazando serragem (!), trata de colocar uma veste e partir, convicto, rumo à algum propósito misterioso. Curiosa com tal criatura, Alice o segue, adentrando num determinado momento, a porta que leva a uma jornada cada vez mais insana e surreal.

Quase destituído de cenas externas –passa-se, em sua quase totalidade, dentro dos cômodos da casa estranhamente suja e anarquizada onde Alice começa a trama –e por vezes encontrando subterfúgios para que o live-action inicial se converta na animação com a qual o diretor se sente muito mais à vontade (como quando Alice se transforma, por efeitos de uma poção que ingere aqui e ali, numa boneca animada quadro-a-quadro), o filme de Svankmajer não promove necessariamente a ida de Alice para algum “país das maravilhas” (tanto é que tal informação sequer consta em seu título) girando em torno muito mais de aparições inusitadas e oníricas nos mesmos ambientes em que a história começou, e nos quais haverá de se manter.

Ainda assim, muito ao seu jeito, Svankmajer preserva ao longo da estranha jornada da pequena protagonista alguns trechos essenciais do livro, muitos deles, tirados de sua ordem e de seu contexto: Como a aparição do Chapeleiro Maluco e da Lebre de Março, ambos habitando o microcosmos caótico e desconfortável de uma mesa de chá onde nada faz sentido, e sobretudo, a aparição da Rainha Vermelha e seus soldados feitos de cartas de baralho (na estética adotada por Svankmajer, tais personagens ganham uma brilhante originalidade visual) sem deixar de lado a obsessão alegórica por cabeças cortadas da irascível monarca.

É muito com um sonho que este filme incomum, curioso e até desconcertante chega a parecer –as impressões almejadas por Lewis Caroll e pela maior parte dos realizações que o tentaram adaptar para o audio-visual são preservadas graças justamente a essa atmosfera surrealista que as escolhas da direção impõem à obra, e a qual não se dissipa do início ao fim.

É porém, uma faca de dois gumes: Ao mesmo tempo que responde por seu maior charme, o aspecto estético, cheio de originalidade presente em “Alice”, também o torna um trabalho de apreciação ligeiramente indigesta na medida em que ficam evidentes as limitações de Svankmajer como diretor, quando o ritmo do filme exige dele um conhecimento no manejo de minimalismos narrativos para que a condução avance com mais harmonia e equilíbrio. Embora essa falta de experiência seja compensada pela palpável paixão que ele exala pelo projeto, ela impede que “Alice” seja um trabalho assim acessível, tornando-o alvo de uma certa incompreensão por parte do público, especialmente aqueles acostumados à ideia de que um filme, sobretudo um de orientação mais infantil, tem por obrigação revelar-se mastigado e decodificado em seu enredo para ser consumido.

Da forma como está, “Alice” é desafiador, imperfeito, bizarro em seu radicalismo estético, e visivelmente indiferente em adotar rumos mais comerciais. Um autêntico cult movie, portanto.

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