sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A Dama do Lotação


 Embora seja visto como um clássico erótico nacional (e ele de fato é), “A Dama do Lotação”, de Neville D’Almeida, traz algumas distinções em relação à demanda de pornochanchadas daquele 1978 em que foi lançado, além das curvas pra lá de estonteantes de Sonia Braga: A predisposição para a análise antropológica do ser humano a ressaltar suas pulsões mais inesperadas e contraditórias de ordem sexual, oriunda do texto corrosivo de Nelson Rodrigues, e uma produção que salta aos olhos a enfatizar sua bela ambientação –pelo menos, até a proposta embutida na obra de D’Almeida arremessar a narrativa no mundo cão dos transportes públicos de então.

Amigos desde os tempos de infância, Solange (Sonia Braga) e Carlos (Nuno Leal Maia) se casam, no entanto, tal e qual a natureza eventual dos mais sórdidos contos eróticos, o casamento com alguém que conhece desde criança não oferece palpitação genuína à mulher que, de início, repele seu marido com indiferença. Na noite de núpcias, Carlos, cego de desejo, força o sexo, estuprando Solange, o que leva ela a afastar-se ainda mais dele; na rotina conjugal e doméstica que se segue, ela se mostra frígida, incapaz de corresponder aos seus desejos, embora ainda afirme que o ama.

Dentro da dramaturgia cruel e inclemente de Nelson Rodrigues, esse acúmulo de neuroses e traumas reprimidos irá se expressar na deterioração da frágil relação social: Apesar das constantes afirmações sobre sua convicção no matrimônio que mantêm, é impossível para Solange conter a iniciativa que a leva a trair Carlos. E na hipocrisia predominante na mentalidade de praticamente todos os personagens masculinos –bem como no sex appeal imbatível de uma Sonia Braga no auge da beleza –ela não tarda a encontrar homens para satisfazer esses anseios: Solange trai Carlos, inicialmente, com o grande amigo (e confidente!) dele, Assunção (Paulo César Pereio, que depois faria, com Sonia, o ótimo “Eu Te Amo”), em seguida, com o próprio pai dele (!?!) (Jorge Dória), numa cama de motel, para então, entregar-se ao motorista de ônibus Bacalhau (Roberto Bonfim). A partir daí, Solange desenvolve o hábito de tomar os ônibus mais lotados do circuito da cidade grande, atraindo o interesse de homens que roçam seus corpos desavergonhadamente no dela, para então, no ponto mais propício, desembarcarem e partirem para as vias de fato.

Como muitas das obras do período e do sub-gênero a brotar no nosso cinema nacional, “A Dama do Lotação” está sujeita à reinterpretação da época em que foi realizado, aos objetivos morais vislumbrados por seu autor, Nelson Rodrigues, e aos códigos de conduta e suas arestas nocivas, contemplados pela premissa assim esboçada.

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