quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Cinemagia - A História das Videolocadoras de São Paulo


 O documentário de Alan Oliveira é o registro do advento, ascensão e fim de uma era, por meio das pessoas que a vivenciaram. Por meio de relatos que soam inicialmente triviais –e cuja captura informal atropela algumas informações mais didáticas –somos conduzidos ao ano de 1976, o início de um fenômeno que estendeu-se pelo mundo inteiro, mas cujo microcosmos a representar tais desdobramentos, veremos, vem a ser um negócio tímido e improvisado, surgido ao sabor de amizades e preferências em comum de pouco mais que três pessoas. O empresário e pioneiro Ghaba foi um entusiasta da cinefilia que, ao lado da esposa e da futura sócia, montou um pequeno cineclube nos subúrbios de São Paulo.

Logo, o empreendimento cresceu com a adesão de mais e mais interessados em assistir aos filmes que ele obtinha em fitas de VHS muitas vezes contrabandeadas e/ou copiadas de originais estrangeiros –a moda dos videocassetes da época começava a tomar conta da classe média e as pessoas queriam acesso a filmes que antes só podiam conferir exclusivamente no cinema (pelo curtíssimo tempo de exibição no circuito, isso aqueles que vinham para o Brasil em tempos de ditadura) ou na TV (anos, às vezes, décadas depois de seu lançamento, e com intervalos comerciais!). O que era então para ser uma prática simplória, sem pretensões e restrita ao nicho cinéfilo começou a crescer exponencialmente, obrigando Gabha e sua equipe a arcar com um acervo cada vez maior (a demanda por novos itens crescia indicando a prosperidade latente do negócio) e um estabelecimento adequado (o fluxo de clientes já não era suportado pelo apartamento que ele tinha alugado), cunhando com o tempo o termo ‘locadora’: Assim surgia a Omni Video, a primeira locadora de filmes de São Paulo e talvez de todo o Brasil.

A medida que a narração dá conta da trajetória iniciada por Ghaba (já falecido na época da realização deste documentário, 2017), outras personalidades vão surgindo na forma de apaixonados por cinema que enxergaram também na gênese das videolocadoras um negócio onde poderiam unir lucro comercial com satisfação cultural –como a proprietária da mais tarde gigante 2001 Video, uma das locadoras (e depois loja on-line) mais influentes do Brasil. Os depoimentos dão conta dos percalços enfrentados nos primeiros anos, da prontidão com que as locadoras conseguiram satisfazer o anseio por cinema de um público que havia sido privado, por tanto tempo, do contato com obras essenciais da sétima arte, e da gradual e lenta legislação de uma prática que então não existia –os primeiros filmes foram comercializados com cópias ilegais, os chamados alternativos, até que em meados dos anos 1980, a Sony e outras grandes distribuidoras internacionais tomam a iniciativa de legalizar os proprietários de locadoras e todo seu acervo (que àquela altura era considerável) substituindo as cópias ilegais (o termo filme pirata surgiu só mais tarde) pelas então chamadas ‘fitas seladas’.

A CIC Video foi pioneira na negociação de todo um repertório vasto de obras em VHS que finalmente trouxeram mais qualidade aos consumidores. À ela, seguiu-se inúmeras outras, inclusive com um trabalho de marketing cada vez mais poderoso a transformar alguns lançamentos em verdadeiros fenômenos do homevideo. O surgimento de críticos especializados –o célebre e saudoso Rubens Ewald Filho marca presença! –e de revistas voltadas para o circuito comercial de homevideo, mais até do que o circuito cinematográfico das salas de exibição (como a Video News e a Ver Video), e a possibilidade que essa nova forma de mídia, o VHS, ofereceu ao resgatar do esquecimento obras cultuadas de cinema que não apareciam necessariamente nas listas de clássicos (algumas delas, leitor, lembradas vez ou outra aqui, no Ato Cinematográfico) através de distribuidoras emergentes que se mantiveram firmes no mercado ao longo dos anos (alguns casos, até hoje) como a Cult Filmes e a Versátil.

O documentário chega até o final dos anos 1990 registrando a chegada revolucionária do DVD, uma nova mídia de aqueceu o mercado das locadoras trazendo inúmeras comodidades ao consumidor –ao contrário do VHS, não precisava ser rebobinado e trazia uma possibilidade de mudança instantânea de idioma na dublagem com um simples click de botão, além do pacote usual de melhor imagem e som. No entanto, muitos proprietários de locadoras não deixam de apontar o aborrecimento com a proliferação quase descontrolada que a década de 2000 trouxe dos filmes pirateados –numa ironia do destino, a mesma modalidade que no início serviu aos propósitos dos proprietários para o nascimento de seu negócio era agora, quase quarenta anos depois, algo que chegava para prejudicar esse mesmo negócio. Ainda naquela década, o mercado também testemunhou o surgimento de outra mídia, o blu-ray, bem mais irrelevante, que fracassou na tentativa de substituir o DVD com a mesma pomba e circunstância que o DVD havia substituído do VHS.

À esse período áureo das videolocadoras assim retratado durante essas quatro décadas segue-se o inevitável declínio, quando a tecnologia digital cada vez mais acessível e vasta em recursos traz os serviços de streaming, uma plataforma que levava uma locadora de filmes praticamente para dentro da casa do consumidor, algo que decretou em definitivo o fim das videolocadoras, encerrando-as num período de tempo.

Os entrevistados nunca deixam de apontar o romantismo com o qual as pessoas daquela época foram capazes de enxergar no ato de frequentar um locadora o prazer táctil de alugar um filme semanalmente para assistí-lo e então devolvê-lo. Eles observam –não sem uma certa razão e certamente não sem imensas doses de nostalgia –como foi uma época mágica e vívida para todos, e como jamais será possível explicar para as novas gerações (para os quais o videocassete, a fita de VHS, e até mesmo o DVD e o blu-ray são quando muito peças de museu) o sentimento de trocar ideias e informações num ambiente propício para a escolha de um filme.

Pela importância histórica de seu tema, e pelo sentimento agridoce que pouco a pouco promove no expectador, “Cinemagia” é um documentário imprescindível a todo e qualquer fá de cinema.

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