terça-feira, 27 de agosto de 2024

O Mundo Depois de Nós


 Produtor, roteirista e diretor, Sam Esmail (da série “Mr. Robot”) é fascinado em teorias da conspiração; lendas urbanas nas quais o sistema vigente é visto por um prisma de fragilidade e suas fundações podem ruir levando nossa civilização ao colapso pelas razões mais mirabolantes. Se “Mr. Robot”, à sua maneira, versava em torno dessa paranóia (ao menos, a sua primeira temporada), o longa-metragem original da Netflix, “O Mundo Depois de Nós”, adaptado do livro de Rumaan Alam, pega emprestado o mote do seminal “O Sacrifício”, de Andrei Tarkovski (no qual um grupo reunido numa mansão isolada recebe a notícia do fim do mundo), para albergar em sua premissa, as considerações muito particulares (e muito instigantes) de Esmail, sua desenvoltura para narrativas carregadas de suspense e tensão, e seu estilo peculiar de direção (onde planos audazes de câmera exploram ambientes com palpitante virtuosismo) em conjugação com um roteiro sempre inconformista.

O casal Amanda e Clay Sandford (Julia Roberts e Ethan Hawke) decide carregar os dois filhos para uma casa retirada em Hamptons, nas proximidades de uma praia. Ou melhor: É Amanda quem toma a decisão, levando o dócil e concordado marido, e os filhos Archie (o artista australiano Charlie Evans) e Rose (a garotinha Farrah Mackenzie) à reboque. A casa é elegante e requintada, alugada via internet por proprietários que Amanda sequer chegou a conhecer pessoalmente.

Por lá, a família se instala rapidamente, e tão efusiva é sua distração que nenhum deles, em princípio, nota indícios (inicialmente sutis) de que algo pode estar prestes a acontecer: O sinal de Wi-Fi começa a falhar, os celulares já não funcionam com a eficiência habitual, notícias em rádio e TV dão conta de misteriosos ataques cibernéticos, um homem em particular (vivido por Kevin Bacon) é avistado abarrotando de suprimentos sua pick-up no mercado local e a praia é invadida por um navio petrolífero desgovernado (!).

Sam Esmail vislumbra o cidadão de classe média-alta em geral, e o norte-americano em particular, na sua inabalável comodidade capitalista. Completamente ignorante dos elementos que conspiram contra ele no mundo lá fora. E é, portanto, do mundo lá fora que deve vir os agentes que haverão de arrancar os Sandford dessa absurda inércia: Na calada da noite (logo, despertando incontestes suspeitas) eis que bate à porta G.H. Scott (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha’la Herrold, da série “Industry”), vindos, de acordo com eles próprios, de Nova York, onde ouviram, em primeira mão, as primeiras notícias alarmantes da crise que se alastra.

G.H. é o dono da casa onde Amanda e Clay estão hospedados. Ele e a filha são negros, enquanto que os Sandford são brancos. É por isso, talvez, na visão ferina de Esmail, que Amanda desconfia com tanta intensidade deles –suas teorias, no início, vão na direção contrária, evitando crer no apocalypse, e travestindo seu preconceito arraigado como ceticismo diante do colapso da sociedade.

É mais fácil ter preconceito do que ter fé.

Na cartilha de ordem dramática elaborada aqui por Sam Esmail, na verdade, o preconceito e a fé surgem como empuxos antagônicos do ser humano: Um é a presunção do passado; o outro, a aceitação abnegada do futuro. Um demanda arrogância; outro demanda humildade.

Mais do que qualquer outra coisa, essa apatia que afasta uns dos outros provem do egocentrismo: Privados da internet (o primeiro item do qual dão pela falta, e que pelo qual os personagens mais padecem ao longo do filme), cada um deles se isola, a lamentar o vazio pessoal que isso proporciona a cada um –Inquieta por natureza, Amanda galga níveis de irritação a medida que não tem mais a conectividade instantânea do celular para atender prontamente seus anseios; Clay, cuja tolerância excessiva é admitida por ele próprio, vê nessa privação um abismo ainda maior de incompatibilidade a surgir entre ele a a esposa; G.H. que se instala na própria casa junto da filha, sabe, na condição de homem articulado e abastado, a situação nos seus devidos moldes, mas isso parece não bastar para tirá-lo do contexto em que, como os demais, se descobre indefeso; sua filha, Ruth, inconformada com a circunstância é a única a notar, com indignação, que ela e o pai acabam dormindo no porão da própria casa (um porão extremamente luxuoso, mas ainda sim, um porão), enquanto os brancos dormem na cama principal; o adolescente Archie, notadamente dependente de redes sociais e videogames, procura esconder sem muito sucesso a crescente vulnerabilidade que descobre quando começa a lhe restar somente a realidade com a qual lidar; e a pequena Rose (a personagem com a qual o filme de Esmail opta por deixar o expectador em seu desfecho) só sabe lamentar, não o fim da civilização, mas a incapacidade de acessar os últimos episódios da série “Friends” (!) que tornou-se para ela, nesse meio-tempo, uma obsessão.

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