segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Curtindo A Vida Adoidado


Eis aqui o grande clássico da filmografia de John Hugues que dedicou seu talento durante boa parte dos anos 1980 à explorar as minúcias e angústias da vida adolescente, com um verniz de leveza e certa fantasia que casava muito bem com o estilo daquela década (vide "Clube dos Cinco" ou "A Garota de Rosa Choking").
Para a sorte de Hugues, ele também pode exercitar sua imaginação num período onde a patrulha do politicamente correto, se existia, não podava lampejos de inspiração que vinham acompanhados de um mínimo de subversão, pois, embora não aparente, “Curtindo A Vida Adoidado” não deixa de ser um filme sobre um adolescente enaltecido e elevado à categoria de herói de cinema unicamente pela iniciativa de gazear aula com um repertório de planos e estratégias que impressionariam o Danny Ocean de “Onze Homens e Um Segredo” (!), tudo isso, antagonizado por uma instituição escolar que surge retratada ora como um local de desengonçada apatia (a fauna caricata de professores bisonhos é um espetáculo à parte), ora como um reduto de vilania arquetípica (o diretor da escola magnificamente vivido por Jeffrey Jones é um dos mais hilários vilões do cinema).
Fosse planejado e realizado nos tempos de hoje, jamais um filme como este seria aceito no circuito comercial –e, talvez seja exatamente por isso (além de sua qualidade e inspiração um tanto difíceis de equiparar) que “Curtindo a Vida Adoidado” jamais tenha ganhado uma continuação ou uma refilmagem numa época em que Hollywood explora todas as obras cultuadas possíveis para delas extrair algum pálido derivado.
Personagem icônico da década de 1980 (ombreando com Marty McFly de “De Volta Para O Futuro”), o adolescente Ferris Buller (vivido com pomba e circunstância por Matthew Broderick) resolve gazear aula mentindo aos pais que está doente levando consigo a namorada (Mia Sara, uma delícia) e seu melhor amigo Cameron (Alan Ruck).
Entretanto, na concepção extravagante de Ferris, matar aula não é um ato convencional. Ele o faz em grande estilo: Leva "emprestado" o porsche de estimação do pai do amigo; engana o tirânico diretor da escola com artimanhas sofisticadíssimas; e faz um tour pela cidade toda, com direito a uma antológica cena quase videoclip, em que põe toda uma parada para cantar e dançar ao som de "Twist And Should" dos Beatles.
Como em alguns de seus melhores trabalhos (e alguns de seus mais irrelevantes, também...), Hugues emprega uma técnica cinematográfica cuidadosa, detalhada, algo fantasiosa, e na opinião de muitos, exagerada em virtude da caracterização de elementos frequentemente banais –aqui, por exemplo, uma corrida para chegar em casa antes dos pais ganha ares de uma insana perseguição cinematográfica.
No entanto, Hugues é brilhante em outros aspectos: Apesar da contundente intenção de divertir, ele atinge um momento em que as vindouras responsabilidades da vida adulta pesam sobre Ferris Bueller e seus amigos –e as trata com propriedade, sobretudo, o impasse que pesa sobre Cameron ao final, levando-o a criar coragem para confrontar a avareza do próprio pai.
A relação entre Ferris e Cameron, inclusive –trabalhada com minúcia e riqueza em todo o filme –deu margem para uma interessante teoria elaborada pelos fãs ao longo dos anos, segundo a qual, Ferris seria uma espécie de identidade alternativa criada pelo próprio Cameron que, inseguro e tímido, desenvolveu uma persona exuberante, cheia de iniciativa e auto-confiança; dessa forma, os dois, que são vistos como uma dupla de melhores amigos, seriam, na realidade, duas personalidades opostas do mesmo indivíduo –algo como os personagens de Edward Norton e Brad Pitt em “O Clube da Luta”.
Haja ou não procedência nessa teoria incrível (e mirabolante), “Curtindo A Vida Adoidado” tem uma série de méritos muitos verdadeiros e inquestionáveis. Um deles: É dono de uma das primeiras (e melhores) cenas pós-créditos do cinema –devidamente homenageada em “Deadpool”.

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