quarta-feira, 5 de julho de 2023

Até Os Ossos


 Maren (a notável Taylor Russell, de “Escape Room”) aparenta ser uma jovem normal, em busca de uma interação social satisfatória com suas colegas de escola. Entretanto, na primeira escapadela das vistas atenciosas do pai (André Holland) descobrimos de fato (e sem muita demora) o grande segredo que a perseguirá ao longo de todo o filme: Ao reunir-se com algumas garotas na casa de uma delas, Maren, que mal iniciou os primeiros estágios da amizade, não se contêm e quase arranca o dedo de uma das garotas com uma mordida (!). Maren é, na verdade, uma canibal (!). O anseio por carne humana lhe persegue desde quando sequer tinha idade para lembrar-se disso –como bem lhe informa o pai por meio de uma fita K7 gravada, deixada pouco antes dele abandoná-la. Sozinha pelos recônditos norte-americanos, Maren adota como objetivo de vida a busca pelo paradeiro da mãe (Chloe Sevigny), enquanto vai aprendendo, aos poucos, a identificar aqueles que, por incrível que possa parecer, são seus semelhantes: Infiltrados entre pessoas comuns, mas enfrentando relativa dificuldade em passarem-se por gente normal, estão, sim, outros canibais como ela –eles se auto-intitulam “devoradores” –incapazes de conter a necessidade quase enlouquecedora por carne humana que, mais cedo ou mais tarde, irá lhes assolar.

Dirigido pelo italiano Luca Guadagnino (realizador até então de filmes irregulares que, em seus últimos três projetos, deu um salto assombroso de inteligência, qualidade e sofisticação), “Bones & All” vale-se do não tão comum expediente dos canibais que vivem entre nós (embora filmes nessa temática tenham aflorado nos últimos anos como “Demônio de Neon”, “Amores Canibais” e o francês “Raw”), para emular uma narrativa intimista, introspectiva e reflexiva que em muito se irmana à outras obras vertentes do vampirismo cinematográfico –tal qual em trabalhos como “Fome de Viver” ou “Quando Chega A Escuridão” o fatalismo inerente à sua condição e necessidade é uma realidade a ser aceita pelos personagens, no gradual entendimento de que é aquilo que os norteia. Hábil entendedor de suas personas, Guadagnino explora com calma e interesse a forma como cada um de seus excêntricos personagens lida com aquilo que é: Sully (Mark Rylance, de “O Bom Gigante Amigo”), o primeiro ‘devorador’ que Maren vem a conhecer, é um homem errático, antissocial e estranho, incapaz de esconder suas pulsões em seu comportamento suspeito e amedrontador. Mais tarde, quando deixa Sully, Maren se encontra com o jovem Lee (Timothée Chalamet, na segunda colaboração com Guadagnino depois do premiado “Me Chame Pelo Seu Nome”) e com ele , encontra uma sintonia um pouco mais apetecível; ambos jovens e arremessados numa mesma realidade itinerante, Maren e Lee se envolvem, unidos na sua dedicação ao canibalismo, cúmplices nas ciladas que elaboram para atrair suas vítimas. Na estrada, eles também conhecem o feroz matuto Jake (o ótimo Michael Stulhbarg) cuja aceitação inconsequente do próprio canibalismo perturba Maren tanto quanto Sully a perturbou.

A um só tempo grotesco e poético, “Bones & All” divide assim sua narrativa ao estilo road-movie entre a vida necessariamente sem raízes desses canibais (fazer vítimas dia após dia significa nunca parar num único local, nem sujeitar-se à tentadora normalidade à qual, por mais que queiram, não são capazes de abraçar) e a relação de amor que Maren e Lee pouco a pouco constroem: Mesmo que afligidos por essa pulsão assassina por carne humana, reza a cartilha dramática do roteiro de David Kajganich (a partir do livro de Camille DeAngelis), tais protagonistas também amam, como qualquer outro ser humano. É claro que, em algum momento, o filme de Guadagnino haverá de corresponder à uma rígida lógica moral com relação aos seus personagens, e até com relação à si próprio: Não há muita esperança de consolo ou redenção na narrativa seca, angustiada e triste que é criada aqui, ainda que com as belas atuações do casal central, o expectador em algum momento chegue a torcer pela boa sorte de personagens tão ambíguos.

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