O grande herói dentre os cineastas autorais em
geral é o russo Andrei Tarkovski. Através de filmes como "O Espelho"
dá pra começar a entender o porque.
Tarkovski faz aqui um estudo meticuloso das
engrenagens peculiares da memória. A primeira cena, o primeiro enquadramento de
câmera já é de um primor impactante, estabelecendo toda uma atmosfera.
São impressões capturadas do que deve ser a
infância de um jovem russo (e que remetem às memórias do próprio Tarkovski) que
está à beira da morte.
Diz-se que durante a realização dessa primeira
cena (que se estende de um momento de contemplação de sua mãe para um diálogo
entre ela e um desconhecido que passava pelo campo) o objetivo que Tarkovski
buscava alcançar era de tal forma detalhista que ele chegou a contratar um
helicóptero para que, usando de sua hélice, ele tivesse controle sobre o vento
que soprava em cena! O resultado é de um esplendor contagiante.
A partir daí, novas cenas se sucedem. Nunca
explicadas. Nunca colocadas numa ordem compreensível. Todas justapostas como
convulsões de uma mente que se descobre inquieta. Ora, são cenas coloridas. Ora,
em preto e branco. Formam quase uma pintura, pinceladas de lembranças que
parecem dialogar entre si num idioma que nos soa misterioso: Num momento vemos
uma mulher (seria a mesma atriz que faz a mãe?) correr em desespero pela rua
até chegar nas dependências de uma impressora. Ela está aflita por uma palavra
que deixou no texto. E, na Rússia de então, onde a liberdade de expressão
representa perigo mortal a quem se expressa, uma palavra errada, no lugar
errado e no contexto errado pode colocar alguém em apuros; Noutro, assistimos à
uma cena de sonho, quando uma mulher parece levitar de sua cama, e a forma como
Tarkovski registra esse desconcertante momento está aberta a infindáveis
interpretações; Há também um trecho, entre os muitos que retornam à vida
campestre da cena inicial, em que a visão mostrada vem a preceder a famosa cena
final de "O Sacrifício", último trabalho do diretor. Uma casa em
chamas, e a relação entre os dois filmes vem a ser uma gramática de cinema
embutida nos pensamentos e na filmografia de Tarkovski que estamos fadados a
passar a vida tentando decifrar.
Assim sendo, em "O
Espelho", de cena em cena, segmento em segmento, o realizador russo parece
compor uma tapeçaria, na qual mais do que os eventos reais que se sucederam
ante seus olhos, as sensações (e diferentes implicações) acerca daquelas
memórias acabam formando uma colcha de retalhos do subconsciente, onde
Tarkovski parece encontrar a si mesmo e a uma identidade por meio da qual
consegue se aceitar como cineasta, como cidadão russo e como ser humano.
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