segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Espelho

O grande herói dentre os cineastas autorais em geral é o russo Andrei Tarkovski. Através de filmes como "O Espelho" dá pra começar a entender o porque.
Tarkovski faz aqui um estudo meticuloso das engrenagens peculiares da memória. A primeira cena, o primeiro enquadramento de câmera já é de um primor impactante, estabelecendo toda uma atmosfera.
São impressões capturadas do que deve ser a infância de um jovem russo (e que remetem às memórias do próprio Tarkovski) que está à beira da morte.
Diz-se que durante a realização dessa primeira cena (que se estende de um momento de contemplação de sua mãe para um diálogo entre ela e um desconhecido que passava pelo campo) o objetivo que Tarkovski buscava alcançar era de tal forma detalhista que ele chegou a contratar um helicóptero para que, usando de sua hélice, ele tivesse controle sobre o vento que soprava em cena! O resultado é de um esplendor contagiante.
A partir daí, novas cenas se sucedem. Nunca explicadas. Nunca colocadas numa ordem compreensível. Todas justapostas como convulsões de uma mente que se descobre inquieta. Ora, são cenas coloridas. Ora, em preto e branco. Formam quase uma pintura, pinceladas de lembranças que parecem dialogar entre si num idioma que nos soa misterioso: Num momento vemos uma mulher (seria a mesma atriz que faz a mãe?) correr em desespero pela rua até chegar nas dependências de uma impressora. Ela está aflita por uma palavra que deixou no texto. E, na Rússia de então, onde a liberdade de expressão representa perigo mortal a quem se expressa, uma palavra errada, no lugar errado e no contexto errado pode colocar alguém em apuros; Noutro, assistimos à uma cena de sonho, quando uma mulher parece levitar de sua cama, e a forma como Tarkovski registra esse desconcertante momento está aberta a infindáveis interpretações; Há também um trecho, entre os muitos que retornam à vida campestre da cena inicial, em que a visão mostrada vem a preceder a famosa cena final de "O Sacrifício", último trabalho do diretor. Uma casa em chamas, e a relação entre os dois filmes vem a ser uma gramática de cinema embutida nos pensamentos e na filmografia de Tarkovski que estamos fadados a passar a vida tentando decifrar.
Assim sendo, em "O Espelho", de cena em cena, segmento em segmento, o realizador russo parece compor uma tapeçaria, na qual mais do que os eventos reais que se sucederam ante seus olhos, as sensações (e diferentes implicações) acerca daquelas memórias acabam formando uma colcha de retalhos do subconsciente, onde Tarkovski parece encontrar a si mesmo e a uma identidade por meio da qual consegue se aceitar como cineasta, como cidadão russo e como ser humano.

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