segunda-feira, 4 de abril de 2016

A Bela da Tarde

Para o cinema Luis Buñuel é o próprio nome do surrealismo. Expectadores sabem disso sem ter assisto aos seus filmes.
 E eles são inúmeros. Diversos. Contraditórios. Loucos. Iconoclastas.
A filmografia de Buñuel é pautada pelos altos e baixos de sua própria vida, pelos locais a que foi exilado, pelas liberdades (ou falta delas) que ele teve, neste ou naquele projeto.
Seu objetivo foi fazer filmes que fugissem à unanimidade. Ele queria incomodar como em “Os Esquecidos”; queria alfinetar, como em “Viridiana”. Acima de tudo, queria deixar nebulosas suas intenções (queria não deixar claro o quê estava querendo!), como em “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, “O Anjo Exterminador”, “Tristana” e tantos outros. Desejava instigar na mente do público uma interpretação própria e pessoal, indo na contra-mão –veja só –do sistema industrial cinematográfico atual, que faz filmes vazios, específicos e formulaicos.
“A Bela da Tarde” representa assim o ideário do que Buñuel buscava.  Quando se fala dele, é certamente esta obra que vem à cabeça, antes de todas as outras. E é incrível como um filme, em princípio feito para transgredir, consiga tanto encantar.
Buñuel amava paradoxos.
E Severine, a personagem vivida por uma radiante (ainda que frígida) Catherine Deneuve é exatamente isso: Um paradoxo. Dona de casa na alta burguesia francesa, ela vive num mundo cujo excesso de conforto lhe tira toda a perspectiva de prazer e, em última instância, de sentir-se viva. Para tanto, ela procura um bordel onde faz um arranjo no qual atenderá seus clientes em segredo, no turno da tarde. Apesar do aspecto não raro repulsivo de seus clientes, é servindo-lhes como prostituta que Severine termina por sentir-se realizada de fato. Afinal, o quê a leva a essas atitudes? Seriam atos de alguém que rende-se às facetas lúgubres de suas fantasias sexuais? Então, o filme todo seria a materialização dessas fantasias? Se a resposta é sim, podemos confiar que há um elemento de realidade no filme, ou não? E se a resposta é não, de que forma ele faria sentido?
A contradição humana é, talvez, o grande tema da filmografia de Buñuel. E ao observá-la, apreciá-la, esmiuçá-la, e contextualizá-la, ele a torna parte de seus filmes, dando margem para infindáveis elucubrações acerca das motivações de suas personas, de onde vieram e para onde terminarão indo e, aqui em específico, onde necessariamente acaba a alucinação e começa a realidade por assim dizer. Pois Buñuel não se vale de expedientes para manter o expectador em sua zona de conforto. Não há absolutamente como saber se o que passa com Severine é ou não um sonho; as cenas se intercalam, mostrando ocasionalmente um despertar, sugerindo que era sonho tudo o que veio antes dele, mas com Buñuel, nenhum desses padrões pode ser considerado, e o filme adquire imenso fascínio sob a luz dessa dicotomia.

“A Bela da Tarde” é o cinema vívido e pleno, sem a necessidade de manuais.

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