quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Ruas de Fogo

Já no inicio, o subtítulo onde surge escrito ‘Uma Fábula de Rock & Roll’ dá (ou deveria dar) a devida idéia do que virá pela frente: Uma produção absolutamente desprovida de realismo, na qual o expectador, antes de mais nada, deve comprar a idéia e embarcar na viagem dançante que o diretor Walter Hill propõe.
Em seguida, surgem as indicações ‘Num outro tempo. Num outro lugar” –de fato, é necessária uma certa abstração no que diz respeito à tentativa de ambientar a trama. “Ruas de Fogo” se passa num mundo à parte, recheado de um estranho futurismo-retrô para todos os lados: Uma direção de arte que aproveita partes do cenário empregado na ficção científica “Blade Runner-O Caçador de Andróides” (cuja inspiração, à propósito, foi o audacioso “Metropolis”, de Fritz Lang) serve de moldura para lanchonetes, motos, veículos, jaquetas de couro e cabelos engomados que remetem aos anos 1950 e 60, inclusive no onipresente comentário musical (pois a trilha sonora é quase uma personagem do filme, a influenciar sobre ele e sobre sua atmosfera todo o tempo). Suas ruas sempre estão molhadas e as cenas acontecem quase sempre à noite, como se a penumbra noturna fosse ali um período de tempo quase permanente: As seqüências à luz do dia são, quando muito, fugazes.
Embora de início isso tudo o faça parecer um corpo estranho na filmografia crua e realista de seu diretor, a trama –como perceberemos mais à frente –é uma espécie de amálgama de muitas das abstrações existentes nas obras cinematográficas de Walter Hill, sejam as que ele realizou, e as que ainda viria a realizar (“Ruas...” foi lançado em 1984).
A jovem e bela cantora, musa de multidões, Ellem Aim (Diane Lane, absurdamente linda) é raptada por uma gangue de desordeiros motociclistas. Seu atual namorado e empresário, o escorregadio Billy Fish (Rick Moranis, um ator irritante que emplacou alguns trabalhos nos anos 1980 e 90, e depois sumiu) contrata para resgatá-la o único homem capaz de executar o trabalho: O casca-grossa Tom Cody (Michael Pare, ruim feito uma ferida), justamente o ex-namorado da moça, que chegou à cidade para visitar sua irmã (Deborah Van Valkenburgh, que o próprio Hill dirigiu anteriormente em “Warriors-Os Selvagens da Noite”).
Auxiliado por uma garota de trejeitos masculinos (Amy Madigan, caricata como a grande maioria dos personagens), ele adentra o covil dos motoqueiros para tentar libertá-la e, se possível, confrontar seu perigoso líder, o ameaçador Corvo Shaddock (Willem Dafoe, como sempre hábil em encontrar o tom certo para o papel).
As cenas que se sucedem à tentativa desses personagens em escapar do julgo dos motociclistas são muito similares ao que Walter Hill fez em 1979, em “Warriors”, inclusive aproveitando o registro visualmente homogêneo e cartunesco que ele oferece das gangues, o quê parece fazer referência, por sua vez, ao seminal “Amor, Sublime, Amor”, nessa mescla de música, rebeldia e necessidade juvenil de extravasar certa agressividade.
Outra referência também, entre as muitas que o filme comporta, são os faroestes, uma visível paixão de Hill, que ele manifestou de modo mais explícito em outros filmes, como o árido “O Limite da Traição”, mas que aqui ganha expressão nas cenas de confronto (onde os antagonistas demonstram um insuspeito código de honra a pairar sobre a sordidez e a brutalidade), na postura dura e impassível de seu anacrônico protagonista (particularmente deslocado na cena final, em meio a um show de rock), e no traquejo com que as cenas de ação –sobretudo aquelas que envolvem armas de fogo –se desenrolam.
Pensar no quão curioso foi a diferenciada e certamente esmerada elaboração desse estranho mundo no qual Walter Hill ambientou sua “fábula de rock & roll” tornam ainda mais intrigantes os rumores de que este foi planejado como o primeiro capítulo de uma trilogia; seu final, ligeiramente aberto, deixa margem para essa especulação, com seu herói rumando para um pôr (ou nascer) do sol, não sobre a cela de um cavalo, mas a bordo de um pitoresco conversível, ao lado de sua masculinizada parceira. 

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