Sentir medo é um ato de bom senso, e nos
primordiais trabalhos de Hayao Miyazaki, essa atitude sensata é normalmente
reservada às crianças. Quando os adultos ganham o protagonismo de suas obras,
eles mesmos possuem indeléveis traços de inocência e infantilidade, únicos
meios capazes de conduzir seus espíritos na atmosfera de aventura de suas
histórias.
Como muitos dos grandes contadores de história,
Miyazaki honra a tradição que o moldou ele próprio, e relembra, com “A Viagem
de Chihiro”, não só os paradigmas que sempre respeitou durante toda sua
carreira, mas também as histórias que instruíram o próprio Miyazaki criança
(uma das mais evidentes é “Alice No País das Maravilhas”).
É, portanto, uma busca por reencontrar aquele
fascínio, não raro indefinível e misterioso, que orienta o cerne deste projeto.
Uma busca à qual Miyazaki se lançou mais ou menos desde “Meu Amigo Totoro” –uma
tentativa válida, admirável e até comovente, de apreender num longa de animação
a névoa de fantasia e assombro que compõe a própria experiência de ser criança.
Como esta é uma experiência muito pessoal de
Miyazaki, ele remete à algumas divindades folclóricas do Japão, que surgem
dando contribuição fundamental à narrativa, e cujos significados maiores
escapam à nossa mentalidade ocidental. Mas como ele também fez deste filme, em
seu incontornável talento, uma experiência universal, a compreensão de todos
esses elementos não interferem na compreensão do brilhantismo e da maravilha da
obra em si.
Estamos no Japão. A menina Chihiro experimenta
uma sensação de vazio. Um pouco desolada por mudar de cidade e,
consequentemente, perder seus amigos, ela ouve o consolo insatisfatório dos
pais enquanto a paisagem transcorre pelo vidro do carro. Tal e qual em
“Totoro”, Miyazaki inicia uma obra com sua heroína infantil chegando à um novo
lugar ao qual sua tenra idade será desafiada à tentativa de se adaptar. Se em
“Totoro”, contudo, esse registro era de otimismo, em “Chihiro” ele vem
acompanhado de tristeza.
Ela vai parar junto com os pais numa espécie de
templo que parece levá-los a um outro lugar, talvez outro mundo! Chihiro
percebe, de imediato, que há algo de errado ali. Seus pais, não.
É como se o ato de crescer lhes tivesse tirado
uma compreensão instintiva do mundo e de seus perigos ocultos.
“Não se preocupe, temos cartão de crédito” é o
que responde com evidente noção de materialismo a mãe de Chihiro diante do
temor da filha.
Os pais da garotinha são então transformados em
porcos por comer inadvertidamente a comida reservada a criaturas mágicas que
aparecem ao anoitecer –numa cena que certamente deve suscitar o mais puro
terror em crianças pequenas.
Não só aquele mundo mágico e suas regras
reprovam (e como conseqüência, castigam) os atos dos pais: O próprio Miyazaki
parece fazer isso!
Sozinha e desesperada, Chihiro arruma um
emprego numa casa de banho para deuses, administrada por uma bruxa que pode, ou
não, ser responsável por tudo o que lhe tem acontecido. Tal bruxa, Yubaba,
oferece um contrato à Chihiro o qual ela paga com a própria identidade: Ela
passa a ser chama de Sem, esquecendo seu nome e quem é, convertendo-se em
subserviência pura.
A ausência da individualidade surge assim como
um operativo do mal num trabalho que, em princípio, parece apenas possuir uma
roupagem de rasa fantasia, mas logo revela aspirações que somente um mestre
nele é capaz de imprimir.
Com o tempo, Chihiro (ou melhor, Sem) faz
amigos, como o enigmático Haku, que serão seus aliados na tentativa de decifrar
esse mundo mágico e resgatar seus pais, ainda que a cada avanço da narrativa,
Miyazaki se dê também o luxo de apagar as linhas divisórias que separam o bem e
o mal, seus personagens adquirem tons ambíguos que acabam confrontando o
público com uma insuspeita humanidade.
Uma indiscutível obra-prima da animação japonesa
agraciada com um merecido Oscar, o único dentre toda a vasta e espetacular
carreira de Hayao Miyazaki.
Vê-lo e revê-lo é um prazer
sempre renovado.
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