quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A Viagem de Chihiro

Sentir medo é um ato de bom senso, e nos primordiais trabalhos de Hayao Miyazaki, essa atitude sensata é normalmente reservada às crianças. Quando os adultos ganham o protagonismo de suas obras, eles mesmos possuem indeléveis traços de inocência e infantilidade, únicos meios capazes de conduzir seus espíritos na atmosfera de aventura de suas histórias.
Como muitos dos grandes contadores de história, Miyazaki honra a tradição que o moldou ele próprio, e relembra, com “A Viagem de Chihiro”, não só os paradigmas que sempre respeitou durante toda sua carreira, mas também as histórias que instruíram o próprio Miyazaki criança (uma das mais evidentes é “Alice No País das Maravilhas”).
É, portanto, uma busca por reencontrar aquele fascínio, não raro indefinível e misterioso, que orienta o cerne deste projeto. Uma busca à qual Miyazaki se lançou mais ou menos desde “Meu Amigo Totoro” –uma tentativa válida, admirável e até comovente, de apreender num longa de animação a névoa de fantasia e assombro que compõe a própria experiência de ser criança.
Como esta é uma experiência muito pessoal de Miyazaki, ele remete à algumas divindades folclóricas do Japão, que surgem dando contribuição fundamental à narrativa, e cujos significados maiores escapam à nossa mentalidade ocidental. Mas como ele também fez deste filme, em seu incontornável talento, uma experiência universal, a compreensão de todos esses elementos não interferem na compreensão do brilhantismo e da maravilha da obra em si.
Estamos no Japão. A menina Chihiro experimenta uma sensação de vazio. Um pouco desolada por mudar de cidade e, consequentemente, perder seus amigos, ela ouve o consolo insatisfatório dos pais enquanto a paisagem transcorre pelo vidro do carro. Tal e qual em “Totoro”, Miyazaki inicia uma obra com sua heroína infantil chegando à um novo lugar ao qual sua tenra idade será desafiada à tentativa de se adaptar. Se em “Totoro”, contudo, esse registro era de otimismo, em “Chihiro” ele vem acompanhado de tristeza.
Ela vai parar junto com os pais numa espécie de templo que parece levá-los a um outro lugar, talvez outro mundo! Chihiro percebe, de imediato, que há algo de errado ali. Seus pais, não.
É como se o ato de crescer lhes tivesse tirado uma compreensão instintiva do mundo e de seus perigos ocultos.
“Não se preocupe, temos cartão de crédito” é o que responde com evidente noção de materialismo a mãe de Chihiro diante do temor da filha.
Os pais da garotinha são então transformados em porcos por comer inadvertidamente a comida reservada a criaturas mágicas que aparecem ao anoitecer –numa cena que certamente deve suscitar o mais puro terror em crianças pequenas.
Não só aquele mundo mágico e suas regras reprovam (e como conseqüência, castigam) os atos dos pais: O próprio Miyazaki parece fazer isso!
Sozinha e desesperada, Chihiro arruma um emprego numa casa de banho para deuses, administrada por uma bruxa que pode, ou não, ser responsável por tudo o que lhe tem acontecido. Tal bruxa, Yubaba, oferece um contrato à Chihiro o qual ela paga com a própria identidade: Ela passa a ser chama de Sem, esquecendo seu nome e quem é, convertendo-se em subserviência pura.
A ausência da individualidade surge assim como um operativo do mal num trabalho que, em princípio, parece apenas possuir uma roupagem de rasa fantasia, mas logo revela aspirações que somente um mestre nele é capaz de imprimir.
Com o tempo, Chihiro (ou melhor, Sem) faz amigos, como o enigmático Haku, que serão seus aliados na tentativa de decifrar esse mundo mágico e resgatar seus pais, ainda que a cada avanço da narrativa, Miyazaki se dê também o luxo de apagar as linhas divisórias que separam o bem e o mal, seus personagens adquirem tons ambíguos que acabam confrontando o público com uma insuspeita humanidade.
Uma indiscutível obra-prima da animação japonesa agraciada com um merecido Oscar, o único dentre toda a vasta e espetacular carreira de Hayao Miyazaki.
Vê-lo e revê-lo é um prazer sempre renovado.

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