Nesta temporada, dois filmes aparentam uma
curiosa similaridade entre si: Este “Elle”, de Paul Verhoeven, e o drama de
guerra “Até O Último Homem”, dirigido por Mel Gibson.
Ambos são obras de insuspeita qualidade e
habilidade (ainda que completamente diferentes entre si) que trazem de volta à
ribalta dois grandes (e polêmicos) realizadores após quase uma década de sua
ausência no cinema.
Não há um segundo de filme desperdiçado na
narrativa vigorosa que Paul Verhoeven impõe aqui, a lançar uma atenção peculiar
sobre desdobramentos corriqueiros do cotidiano (trabalhar; encontrar-se com
amigos, conhecidos, familiares; participar de uma festa de Natal) cujo contexto
transforma tais percepções numa audaciosa abordagem da postura que escolhemos
para lidar com acontecimentos da vida, e que terminam por nos definir.
“Elle” é, portanto, um filme cujo brilho e
genialidade provêm, acima de tudo, dos fatores inerentes à sua protagonista. E que
golpe de sorte teve Verhoeven ao escalar Isabelle Huppert para interpretá-la –Isabelle
Huppert é a continuidade do filme. É a sua coerência. É a razão absoluta para a
trama sustentar-se e, no tom espetacularmente preciso de sua atuação, dela
proporcionar a chance para que o público extraia exatamente os tópicos e
observações almejados pelo diretor.
Que atriz, senhores! Que atriz!
Qualquer outra intérprete em seu lugar (e olha
que Verhoeven cogitou, de fato, usar nomes mais hollywoodianos como Sharon
Stone ou Nicole Kidman), e o filme perderia seu impacto, e a exatidão fluida
com que se dá seu desenvolvimento.
Isabelle é Michelle (ou Elle para os mais íntimos),
uma mulher bem-sucedida que, já na cena que abre o filme, é estuprada dentro da
própria residência por um mascarado misterioso.
Os dias que se seguem registram um
comportamento inesperado da parte dela, em relação ao ocorrido –e particularmente
interessa muito ao diretor Verhoeven essa dicotomia.
Dona de uma empresa de designer de videogames,
Elle não é uma mulher acostumada ao vitimismo: Quando relata o que aconteceu ao
ex-marido e a um casal de amigos numa mesa de restaurante, ela é a menos
abalada com o fato.
Não há também nada de comum em Elle: Ela
exerce, como ficará nítido ao longo do filme, um controle ocasionalmente tirânico
sobre as pessoas à sua volta: Interfere nas relações afetivas da própria mãe,
assim como do filho, que vai morar com a namorada grávida num apartamento que
Elle faz questão de bancar. Até mesmo a vida amorosa do ex-marido não lhe
escapa ao radar.
Há, talvez, uma explicação para isso: Na infância,
Elle assistiu, do mais inusitado dos camarotes, uma chacina psicótica perpetrada
pelo pai (e muito bem ilustrada, com parcimônia e brilho, ao longo do filme),
cuja lembrança oscila na memória dela entre o intencionalmente repulsivo e o
convulsivamente terno.
Daí o rigor com que Elle encara todo o resto –e
a personagem só não perde em empatia para o expectador, porque é uma cintilante
e genial Isabelle Huppert quem está lá, a catalisar toda a importância do
filme.
E, se controle é um elemento que determina a
maneira com que ela lida com tudo o mais, não é o fato de ter sido estuprada
(e, nem mesmo, de seu misterioso estuprador ainda estar por perto, a cercá-la),
que irá mudar isso: Pouco a pouco, Elle estabelece um jogo de reconhecimento,
aproximação e, por que não, de sedução com seu agressor. Um jogo que não se
altera nem mesmo depois que ela descobre a identidade dele!
Muitos foram os patrulheiros do politicamente
correto que criticaram o filme de Paul Verhoeven (que sempre esteve habituado à
uma controvérsia) acusando-o de criar uma obra que enaltece a cultura do
estupro. Um erro crasso: Verhoeven tão somente se recusa a embalar seu filme e
sua protagonista numa roupagem convencional e melodramática da qual tantos
outros filmes já lançaram mão. À sua maneira sarcástica, debochada e ousada,
Verhoeven dá um ímpeto de empoderamento feminino à “Elle”, fazendo dela a
grande personagem de sua própria história.
Um diferencial espetacular
que coloca “Elle” entre os melhores filmes do ano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário