segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Violência Gratuita

Os seres humanos adoram ir ao cinema para ver os personagens que ama sofrer. É essa característica algo hipócrita e sádica que Michael Haneke escancara, de forma crua e sem concessões, em “Violência Gratuita”.
Tendo o diretor austríaco realizado dois filmes (o original e sua refilmagem, em 1997 e 2007), esse projeto se presta, também, a uma outra leitura: A necessidade banal com que versões faladas em inglês das mesmas histórias insistem em ser concebidas sobre o pretexto de expor o material a um público mais amplo –disposto a torcer essa regra, contradizê-la e, no processo, evidenciar sua futilidade, a versão de 2007 de Haneke para seu “Violência Gratuita” refaz o filme frame a frame, em minúcia, enquadramento e concepção, alterando praticamente apenas o elenco (agora hollywoodiano) e o idioma com o qual o roteiro é declamado.
Não obstante essa alfinetada promovida por Haneke ao sistema de cinema industrial, existem diferenças entre as duas versões que conseguem superar a esmagadora (e deliberada) similaridade de execução: São pequenos detalhes, impressões que as diferentes caras do elenco acabam proporcionando, sensações distintas –quase microscópicas –nesta ou naquela cena.
Levando isso em conta, fico com a versão de 1997, a original.

Entretanto, a rigor, a trama de ambos é exatamente a mesma: Numa casa de lago, uma família de classe média alta (Suzanne Lothar e Ulrich Muhe na versão 1997; Naomi Watts e Tim Roth, na 2007) é visitada por dois jovens de aparência vistosa e jeito polido de falar (Arno Frisch e Frank Giering, 1997; Michael Pitt e Brady Corbet, 2007).
A mulher os recebe quando pedem educadamente por alguns ovos, mas a partir do momento que entram porta adentro, eles fazem todos de reféns e submetem essa família a uma tortura física e psicológica das mais insuportáveis.
Haneke, assim como no também perturbador e inquisitivo "Caché", demonstra interesse em expor em seus filmes a falsa noção de segurança que acomete as classes privilegiadas. Mas sua reflexão mais pungente, operada por meio deste filme atroz, visa criticar a forma como o expectador médio se regozija com a violência enquanto entretenimento, e quebra cada uma das regras hollywoodianas com as quais o público se tornou confortável, ao longo dos anos, em consumir esse tipo de passatempo: Aqui, os cães podem morrer; as crianças podem se ferir, e as vítimas não têm uma oportunidade de retribuir seu flagelo.
Não que, para isso, Haneke imponha realismo à obra –ele mostra-se irônico e atrevido o suficiente para provocar o expectador com um breve instante, em meio à terrível tensão psicológica, no qual a protagonista consegue alvejar um dos bandidos. Na seqüência, contudo, para a frustração do público, Haneke abandona a verossimilhança em favor dos vilões ao permitir que um deles ‘rebobine o filme’ e consiga salvar o companheiro (!).
No cinema de Haneke, a arte do choque proporcionada pela mais pungente das atmosferas não se presta a entreter o expectador com narrativas óbvias e previsíveis. Ela serve, antes de mais nada, a um questionamento profundo e necessário acerca do juízo que fazemos de males que muitas vezes apreciamos com a indiferença de quem não parou para pensar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário