segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

As Margaridas

A morena é extrovertida e risonha, bela, porém desleixada, não parece levar nada a sério. A loira, por sua vez, segue parecida com ela, tem as pernas tortas e uma estranha adoração pela amiga –nunca a deixa ficar sozinha com um homem, por exemplo.
Se essa descrição das personagens principais pouco parece ilustrar uma sinopse satisfatória é melhor que fique registrado que é o mais próximo que se pode chegar de uma definição plausível da tênue linha narrativa que norteia este trabalho convulsivo, improvisado e profundamente conceitual da diretora Vera Chytilová.
O modo de filmar busca, em sua aparência, o desconforto do expectador, somado a uma ambivalência de gênero que torna o filme, por assim dizer, imprevisível. A diretora se vale de cenas em preto & branco, sépia e colorido, filtros variados nos mais distintos efeitos óticos, e alguns parecem arremessados sem maiores critérios na tela.
Sua idéia do som digressivo distorce por completo o objetivo narrativo do recurso e permite relações inúmeras que remetem ao caos de Buñuel –os efeitos sonoros, tenham eles algum significado ou não, fazem um comentário de indisfarçável sarcasmo e deboche às cenas.
A ordem do dia é o experimentalismo, e como todo o movimento dessa natureza, este busca romper as amarras sociais da Tchecoslováquia dos anos 1960 de então, época em que foi realizado, quando a sociedade amargava não só a repressão do regime comunista como também as habituais mazelas (perceptíveis até hoje) do machismo, do totalitarismo, da guerra e da falta de liberdade de expressão.
Todos esses são paliativos que parecem desencadear a anarquia que as duas personagens promovem durante os segmentos estranhamente episódicos do filme.
Passeia-se por todos os gêneros, do drama à comédia, do romance ao musical, do documentário ao surrealismo. E especula-se os mais diferentes estilos de linguagem também –numa cena o filma assume todas as características possíveis do cinema mudo e, na seguinte, pode fazer alusão à verborragia de Jean-Luc Godard.
Aliás, Godard parece ser a referência suprema para o trabalho fora de eixo da diretora Chytilová, aquele Godard incipiente, incorrigível e pretensamente artístico, de obras muitas vezes incompreendidas e incompreensíveis como “Duas Ou Três Coisas Que Eu Sei Sobre Ela” e “O Demônio das Onze Horas”. Há também uma proximidade temática e espiritual com o projeto duplo sueco “Eu Sou Curiosa-Azul” e “Amarelo”.
Mas é, acima de tudo, um filme que se abstém da linearidade se tornando assim um desafio à definição formal e convencional e, por isso mesmo, um tratado à liberdade de criação sem amarras, onde a arte pode transcorrer solta e evoluir, por meio das infindáveis interpretações daqueles que o assistirem. Pessoalmente, a diretora lhe impõe uma graciosidade que parece ser inerente à suas empáticas atrizes protagonistas.
Um sopro de ar tão absurdamente fresco que quase arde os pulmões.

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