sábado, 4 de março de 2017

A Fonte da Donzela

Uma das forças do cinema é a maneira como se encontra nele uma válvula para que autores de insuspeita habilidade e perícia possam discorrer sobre as pulsões morais, psicológicas e emocionais que norteiam (e às vezes desestabilizam) o ser humano.
Em “A Fonte da Donzela”, Bergman utiliza o cinema para expor uma questão acompanhada de um comentário pessoal que dificilmente ganharia mais complexidade se fosse discutido em um texto, ou numa peça de teatro, ou numa poesia.
Curiosamente, o filme une, em seu rigor formal –típico de Bergman –todas essas qualidades: É ao mesmo tempo um elaborado compêndio de observações morais, com encenação marcadamente rígida (Bergman tinha formação teatral), e não raro pulsa de uma abstração poética que lhe embriaga do início ao fim.
Não à toa, “A Fonte da Donzela” serviu de inspiração à uma refilmagem infame promovida por Wes Craven (que pode ter procurado em Bergman uma forma de propiciar a seu filme uma aura de requinte que ele, em verdade, não tinha), trata-se do exorbitante, ultrajante e árido “Aniversário Macabro” –cuja vulgaridade, em contraponto à elegância do filme original, vinha em face da época em que foi feito, anos 1970, período das exploitations.
Mas, voltemos ao trabalho de Bergman.
Como muitas de suas obras, não é algo exatamente fácil: A narrativa já começa cheia de rancor quando testemunhamos uma empregada invocando seus próprios deuses para que eles amaldiçoem a bela jovem, filha do líder da aldeia, moça de muitas virtudes, o quê inspira profunda inveja na serviçal.
Numa travessia a cavalo pela floresta, a jovem de fato encontra um grupo de mal-feitores que a estupram e a matam, acompanhados por um garoto, uma testemunha espantada de toda a atrocidade.
Mais tarde, Bergman mesclará ironia com crueldade ao fazer desses mesmos mal-feitores hóspedes aleatórios na casa do pai da jovem (o grande Max Von Sydow). Uma vez descoberto o crime, ele colocará em prática um ato irreprimível de vingança e matará sem piedade todos os membros daquele grupo.
O comentário subliminar que Bergman reserva a esse fato é que o garoto também é morto, incluído em meio aos criminosos sentenciados como se fosse um deles –é o diretor sueco vislumbrando uma perpetuação da violência, através de uma sutil reprovação da justiça pelas próprias mãos.
O final busca trazer um pouco de lirismo à este amargo conto de eventuais torções éticas: O corpo da jovem é encontrado e levado para que sua morte seja devidamente velada, e em seu lugar, brota um pequeno veio de água pura.
Uma indicação de Bergman de que, apesar da sordidez que ele se presta a avaliar neste e em outros trabalhos, o mundo tem sim uma parcela salutar e essencial de pureza, bondade e transparência.

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