quinta-feira, 30 de março de 2017

Fitzcarraldo

A gradativa (e quase sempre imperceptível) transmutação que a determinação em sua aplicação mais paulatina e constante sofre até se tornar obsessão, e então deixar-se transfigurar pela insanidade.
É essa questão que interessa a Werner Herzog na grande maioria de seus trabalhos –é de um quase respeito e reconhecimento a forma com que ele observa a queda desses protagonistas específicos que ele nomeou em direção à uma loucura que eles mesmo, sem querer, almejaram; e na maioria dos casos, também, esses protagonistas ganharam a expressão de Klaus Kinski: “Fitzcarraldo”, “Cobra Verde”, “Aguirre-A Cólera dos Deuses” e até mesmo “Nosferatu-O Vampiro da Noite”.
Todos são seres tragados pela própria natureza inerente à sua vontade e apesar dela.
E todos tinham a acomodação desigual, assim como abismos negros insondáveis de angustia proporcionados pela caracterização particular que Kinski deu a cada um.
Engolido pelo exotismo vasto e pela promessa de infindáveis riquezas naturais da Floresta Amazônica, Fitzcarraldo (é como Fitzgerald é chamado pelos índios) logo prospera com o comércio da borracha obtida nas seringueiras. A intenção de trazer a civilização até aquele ambiente inóspito lhe parece ser o passo seguinte irmanando-se à nobreza dos desbravadores que ergueram cidades inteiras nos confins da América. Fitzcarraldo quer mais que isso, quer levar a arte européia e aristocrática ao coração da selva, e esse ímpeto está ilustrado com potência no sonho de lá construir uma ópera. Mas, até os sonhos megalomaníacos precisam avançar com alguma cautela: Antes de tal feito, ele deve encontrar um meio de chegar em algumas regiões tidas por intransponíveis com seu imenso barco a vapor.
A síntese visual com a qual Herzog registra essa jornada espelha, ela própria, a obsessão desse protagonista e sua incapacidade de retroceder: A impressionante cena em que esforços inacreditáveis são despendidos para fazer com que tal embarcação seja empurrada por toda uma montanha de terra e lama acima, para então chegar ao rio é reconstituída em toda a sua minúcia de irreal absurdo, sem qualquer intervenção de efeitos digitais, tão longe estavam eles de entrarem em voga.
Composto de diversas passagens momentosas de almejado impacto, “Fitzcarraldo” está ao lado de obras maiúsculas como “Apocalypse Now”, “2001-Uma Odisséia No Espaço”, ou mesmo “Titanic”, nas quais a determinação singular de uma mente criativa enxerga no próprio cinema uma forma de expressão para rompantes tão inacreditáveis que só seriam críveis se fossem materializados de fato em frente às câmeras.

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