sexta-feira, 21 de abril de 2017

Paprika

São tantas que chegam a ser constrangedoras as similaridades da trama (e da própria concepção visual) da animação “Paprika”, de Satoshi Kon, com “A Origem”, de Christopher Nolan.
Constrangedoras para o premiado filme de Nolan, diga-se, já que a obra-prima “Paprika”, lançada em 2004, é bastante anterior ao filme.
Trata-se de uma animação que apenas ratifica o gênio que é Satoshi Kon: Tal e qual os mestres Hayao Miyazaki e Katsuhiro Otomo, ele vale-se da linguagem da animação para criar cinema de verdade, com pormenores cinematográficos que às vezes não existem nem mesmo em filmes pretensamente adultos.
“Paprika” é sobre o mundo dos sonhos, ou mais necessariamente, um mundo onde os sonhos têm uma utilidade determinante e transformadora na vida desperta de todas as pessoas.
Ainda um projeto experimental, contudo, essa tecnologia de penetrar nos sonhos alheios é empregada por baixo dos panos, e sua agente mais ativa é a jovem cientista que gerencia o projeto. Ela ajuda, por exemplo, um detetive da polícia a amenizar o tormento de sonhos recorrentes envolvendo um homicídio ainda sem solução, e que parecem relacionar-se com memórias do passado bem como de filmes antigos (“Tarzan”, “A Princesa e OPlebeu”) que ele assistiu. A identidade que essa cientista adotou nos sonhos, bem mais afável e descontraída que a dela própria, é Paprika, uma moça capaz de saltar através das ilusões, cujos poderes nunca ficam realmente claros.
Todos se alarmam quando descobrem que o aparelho que permite a entrada nos sonhos é roubado, e passa a ser usado por alguém cuja identidade ainda é desconhecida, mas o propósito para ser o de envolver o mundo inteiro numa espécie de ilusão suicida.
Bem mais enigmático que o filme de Christopher Nolan –cuja estrutura é didática e excessivamente inteligível a despeito de muitos que declararam não o terem entendido –o trabalho de Satoshi Kon não tem por objetivo a manutenção de cenas de ação ou suspense, ou qualquer subterfúgio que norteia o cinema hollywoodiano: “Paprika” se aproxima, nesse sentido, de alguns dos trabalhos de David Lynch, onde a contemplação de um limite nunca claro e estipulado entre sonho e vida real permite o questionamento acerca dos diferentes estágios da realidade, e da condição humana em meio à eles.
Embalado num arrojo visual assombroso, a animação de Kon parece lançar inúmeras questões sobre a nossa percepção da vida e de nós mesmos, investigando aspectos tão distintos quanto a natureza do amor, a propensão para a loucura e a auto-destruição e as fugazes armadilhas da memória, todos eles peculiaridades desvantajosas que herdamos enquanto seres humanos agraciados com a vantagem suprema da auto-consciência.
Belo, filosófico, vibrante, arrebatador e existencial como por vezes só as grandes animações japonesas conseguem ser. 

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