São tantas que chegam a ser constrangedoras as
similaridades da trama (e da própria concepção visual) da animação “Paprika”,
de Satoshi Kon, com “A Origem”, de Christopher Nolan.
Constrangedoras para o premiado filme de Nolan,
diga-se, já que a obra-prima “Paprika”, lançada em 2004, é bastante anterior ao
filme.
Trata-se de uma animação que apenas ratifica o
gênio que é Satoshi Kon: Tal e qual os mestres Hayao Miyazaki e Katsuhiro
Otomo, ele vale-se da linguagem da animação para criar cinema de verdade, com
pormenores cinematográficos que às vezes não existem nem mesmo em filmes
pretensamente adultos.
“Paprika” é sobre o mundo dos sonhos, ou mais
necessariamente, um mundo onde os sonhos têm uma utilidade determinante e transformadora
na vida desperta de todas as pessoas.
Ainda um projeto experimental, contudo, essa
tecnologia de penetrar nos sonhos alheios é empregada por baixo dos panos, e
sua agente mais ativa é a jovem cientista que gerencia o projeto. Ela ajuda,
por exemplo, um detetive da polícia a amenizar o tormento de sonhos recorrentes
envolvendo um homicídio ainda sem solução, e que parecem relacionar-se com
memórias do passado bem como de filmes antigos (“Tarzan”, “A Princesa e OPlebeu”) que ele assistiu. A identidade que essa cientista adotou nos sonhos,
bem mais afável e descontraída que a dela própria, é Paprika, uma moça capaz de
saltar através das ilusões, cujos poderes nunca ficam realmente claros.
Todos se alarmam quando descobrem que o
aparelho que permite a entrada nos sonhos é roubado, e passa a ser usado por
alguém cuja identidade ainda é desconhecida, mas o propósito para ser o de
envolver o mundo inteiro numa espécie de ilusão suicida.
Bem mais enigmático que o filme de Christopher
Nolan –cuja estrutura é didática e excessivamente inteligível a despeito de
muitos que declararam não o terem entendido –o trabalho de Satoshi Kon não tem
por objetivo a manutenção de cenas de ação ou suspense, ou qualquer subterfúgio
que norteia o cinema hollywoodiano: “Paprika” se aproxima, nesse sentido, de
alguns dos trabalhos de David Lynch, onde a contemplação de um limite nunca claro
e estipulado entre sonho e vida real permite o questionamento acerca dos
diferentes estágios da realidade, e da condição humana em meio à eles.
Embalado num arrojo visual assombroso, a
animação de Kon parece lançar inúmeras questões sobre a nossa percepção da vida
e de nós mesmos, investigando aspectos tão distintos quanto a natureza do amor,
a propensão para a loucura e a auto-destruição e as fugazes armadilhas da
memória, todos eles peculiaridades desvantajosas que herdamos enquanto seres
humanos agraciados com a vantagem suprema da auto-consciência.
Belo, filosófico, vibrante,
arrebatador e existencial como por vezes só as grandes animações japonesas
conseguem ser.
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