Há algo de shakespeariano na construção irrepreensível,
seja técnica, seja artística, da obra-prima sólida e antológica que é a “Trilogia
da Vingança” (composta pelos filmes “Senhor Vingança”, “Old Boy” e “Lady
Vingança”) perpetrada pelo diretor sul-coreano Chan Wook Park.
Se Shakespeare era a aplicação daquele
trabalho, em “A Criada” essa inspiração parece vir das obras libidinosas, não
raro impiedosas e imprevistas do Marquês De Sade.
Ainda que –sendo este um daqueles trabalhos
onde qualquer informação compromete o desenrolar surpreendente da trama –essa característica
não apareça de imediato.
O que se percebe, sim, tão logo as câmeras
registram os primeiros segundos de filme, é a habilidade extraordinária do
diretor Chan Wook Park em particular (e dos cineastas sul-coreanos em geral):
Sequer há a necessidade que o filme lance mão de intertítulos explicativos que
dêem noção de tempo, contexto e lugar à história –eles o fazem através da
construção da cena, pontuada por detalhes essenciais e pertinentes. Dessa forma
pode-se notar que essa é a Coréia do Sul da década de 1930, em meio à ocupação
japonesa e à iminência da Segunda Guerra Mundial.
Jovem pobre de um pobre vilarejo, a
ansiosamente esperta Sooke (Kim Tae Ri) aceita um cargo de criada numa
longínqua mansão de propriedade de uma jovem milionária japonesa, a
inicialmente angelical Lady Hideko (Kim Min Hee). Sooke está lá, porém, para
ser cúmplice num golpe planejado por um vigarista (Ha Jung Woo): Ganhar a
confiança da patroa e incitá-la num romance com ele, que finge ser um
aristocrata japonês chamado Conde Fujikawa. Uma vez desposando-a (e herdando
assim sua fortuna), ele afirma que a colocará num hospício e fugirá com Sooke.
As personagens das duas mulheres –e seus pontos
de vista magnificamente reordenados ao longo da narrativa –deixam claro a dor e
a submissão de viver num mundo dominado por homens, à mercê dos desvios
masculinos mais grotescos.
O inesperado começa a interferir nos rumos
convencionais da trama quando a patroa e a criada começam a desenvolver uma
relação sexual, intensa e recíproca –o quê leva este esplêndido trabalho a
rivalizar (ou quem sabe até superar!) em voltagem erótica as cenas de sexo também
surpreendentes dos já lendários “Cidade dos Sonhos” e “Azul É A Cor Mais Quente”.
Audacioso como poucos, Chan
Wook Park cria um filme praticamente inquestionável em todos os seus aspectos.
Da estrutura não linear e repleta de revelações e reviravoltas desconcertantes
de seu roteiro, passando pela concepção delicada, minuciosa e criteriosa de
todos os seus personagens (com ênfase nas duas maravilhosas protagonistas), até
praticamente todos os quesitos de ordem técnica (figurino, direção de arte,
fotografia e trilha sonora), o quê ele fez ganha o mais irrevogável mérito de ser
chamado ‘aula de cinema’.
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