Os filmes realizados por Orson Welles são
difíceis de serem analisados sem a bagagem informativa que os acompanham –a
pecha de gênio do cinema e realizador do até outro dia ‘melhor filme de todos
os tempos’ (“Cidadão Kane”, no caso) interfere quanto assistimos algum filme
seu. Uns podem ser esmagados pela expectativa e acabar superestimando um
trabalho que se revela inevitavelmente datado; outros, diante da aclamação convulsiva
da crítica, podem se sentirem culpados se não encontrarem algo de que gostaram
num filme seu.
Tudo humanamente possível.
Todavia, uma obra como “Soberba” –que ao meu
ver possui predicados que superam “Cidadão Kane” –mostra-se além de qualquer impressão
inicial.
Sua expressiva fotografia, assim como naquele
filme vale-se de uma carpintaria visual cheia de minúcias em uma coordenação
muito particular de sombras, enquadramento e iluminação, deixando bastante
claro o potencial de Welles como contador de histórias.
Realizada um ano após “Kane”, este filme
guarda, curiosamente, uma aproximação temática do trabalho anterior de Welles:
Como em seu consagrado filme, ele lança um olhar de sintomática sondagem sobre
as fissuras de aparência na postura da classe alta elitista, por meio das quais
é possível enxergar sentimentos muito mundanos, que os ricos compartilham com
qualquer outra classe social, como a covardia, a arrogância, a rejeição e a
desonestidade. Para Welles, contudo, o detalhe da riqueza permite a tais
personagens a possibilidade de se reinventar e esconder, de si e do mundo, os
aspectos inconvenientes de sua história (como em “Kane”), ou determinar
caprichosamente o destino de si e dos outros à sua volta (como neste filme).
Ainda que tudo isso, com efeito, tenha seu preço.
“Soberba” é assim, no fundo, no fundo, sobre as
imposições de uma história de amor.
Pois, desde a juventude Eugene Morgan (Joseph
Cotten, o repórter nunca mostrado em cena de “Cidadão Kane”) ama Isabel
Amberson (Dolores Costello), filha da família mais rica e proeminente da cidade
de Indianápolis. E eles teriam se casado, não fosse um deslize de Eugene numa
noite de bebedeira, o que termina levando-a para os braços de outro
pretendente, Wilbur Minafer (Don Dillaway).
Os anos passam e Isabel tem um filho, o mimado
e arrogante George (Tim Holt).
Eugene, agora um bem sucedido empresário do
emergente ramo automobilístico, tem também uma filha, Lucy (Anne Baxter, de “A
Malvada”), por quem o próprio George termina se interessando.
Com a viuvez de Isabel, Eugene enxerga a
possibilidade de concretizar seu romance de juventude, mas a imaturidade e a
futilidade de George o levam a tentar paulatinamente impedir que sua mãe se
relacione com ele, ignorante do quanto a faz sofrer com isso.
Curioso que haja também um comentário da parte
de Orson Welles, sobre a mentalidade dos tradicionalmente ricos e sua constante
incapacidade de aceitar e moldar-se conforme as transformações do mundo ao seu
redor –traduzidos especialmente na maneira implicante e quase infantil com que
George hostiliza os negócios de Eugene, alegando que carros não deveriam
existir, apenas carruagens com cavalos. É um subtexto muito parecido com o que
Luchino Visconti também deu ao seu opulento “O Leopardo”.
Uma observação contundente
e austera sobre os novos tempos que chegavam, um drama familiar e romântico de
admirável solidez e um estudo magnífico sobre as torpes facetas do caráter.
Isso tudo –quem diria –não é exclusividade de “Cidadão Kane” em meio à grande
filmografia de Orson Welles.
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