segunda-feira, 8 de maio de 2017

Soberba

Os filmes realizados por Orson Welles são difíceis de serem analisados sem a bagagem informativa que os acompanham –a pecha de gênio do cinema e realizador do até outro dia ‘melhor filme de todos os tempos’ (“Cidadão Kane”, no caso) interfere quanto assistimos algum filme seu. Uns podem ser esmagados pela expectativa e acabar superestimando um trabalho que se revela inevitavelmente datado; outros, diante da aclamação convulsiva da crítica, podem se sentirem culpados se não encontrarem algo de que gostaram num filme seu.
Tudo humanamente possível.
Todavia, uma obra como “Soberba” –que ao meu ver possui predicados que superam “Cidadão Kane” –mostra-se além de qualquer impressão inicial.
Sua expressiva fotografia, assim como naquele filme vale-se de uma carpintaria visual cheia de minúcias em uma coordenação muito particular de sombras, enquadramento e iluminação, deixando bastante claro o potencial de Welles como contador de histórias.
Realizada um ano após “Kane”, este filme guarda, curiosamente, uma aproximação temática do trabalho anterior de Welles: Como em seu consagrado filme, ele lança um olhar de sintomática sondagem sobre as fissuras de aparência na postura da classe alta elitista, por meio das quais é possível enxergar sentimentos muito mundanos, que os ricos compartilham com qualquer outra classe social, como a covardia, a arrogância, a rejeição e a desonestidade. Para Welles, contudo, o detalhe da riqueza permite a tais personagens a possibilidade de se reinventar e esconder, de si e do mundo, os aspectos inconvenientes de sua história (como em “Kane”), ou determinar caprichosamente o destino de si e dos outros à sua volta (como neste filme). Ainda que tudo isso, com efeito, tenha seu preço.
“Soberba” é assim, no fundo, no fundo, sobre as imposições de uma história de amor.
Pois, desde a juventude Eugene Morgan (Joseph Cotten, o repórter nunca mostrado em cena de “Cidadão Kane”) ama Isabel Amberson (Dolores Costello), filha da família mais rica e proeminente da cidade de Indianápolis. E eles teriam se casado, não fosse um deslize de Eugene numa noite de bebedeira, o que termina levando-a para os braços de outro pretendente, Wilbur Minafer (Don Dillaway).
Os anos passam e Isabel tem um filho, o mimado e arrogante George (Tim Holt).
Eugene, agora um bem sucedido empresário do emergente ramo automobilístico, tem também uma filha, Lucy (Anne Baxter, de “A Malvada”), por quem o próprio George termina se interessando.
Com a viuvez de Isabel, Eugene enxerga a possibilidade de concretizar seu romance de juventude, mas a imaturidade e a futilidade de George o levam a tentar paulatinamente impedir que sua mãe se relacione com ele, ignorante do quanto a faz sofrer com isso.
Curioso que haja também um comentário da parte de Orson Welles, sobre a mentalidade dos tradicionalmente ricos e sua constante incapacidade de aceitar e moldar-se conforme as transformações do mundo ao seu redor –traduzidos especialmente na maneira implicante e quase infantil com que George hostiliza os negócios de Eugene, alegando que carros não deveriam existir, apenas carruagens com cavalos. É um subtexto muito parecido com o que Luchino Visconti também deu ao seu opulento “O Leopardo”.
Uma observação contundente e austera sobre os novos tempos que chegavam, um drama familiar e romântico de admirável solidez e um estudo magnífico sobre as torpes facetas do caráter. Isso tudo –quem diria –não é exclusividade de “Cidadão Kane” em meio à grande filmografia de Orson Welles.

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