Personificado com inquestionável primor por
Marcello Mastroianni, o cineasta (e alter-ego absoluto de Fellini) Guido
Anselmi não se vê nada confortável com a pressão de todos que o cercam em
relação à execução de sua próxima obra que, em função de um bloqueio criativo
provocado pelas expectativas alheias, ele não faz idéia de como será.
Sua fuga dessa opressão do mundo real e de suas
exigências é, em termos literais, numa estação de águas (onde não tardam a
encontrá-lo esposa, amante, amigos, produtores) e, mais tarde, em termos figurativos,
nas lembranças do passado e na própria imaginação.
As mulheres que o rodeiam, se em outros tempos
o inspiravam, servem também de poderosa fonte de perplexidade –some-se a isso
praticidade melindrosa da esposa (Ainouk Aimée), o histrionismo insistente da
amante (Sandra Milo), a beleza ofuscante ainda que opressora de sua musa
(Claudia Cardilane), e as infinitas impressões daquelas que existem em sua
recordação e que, à medida que a narrativa se estilhaça em diversos fragmentos
líricos, se confundem com o que é real; e nesse sentido, é um primor a cena em
que ele se vê dentro de uma casa de banhos na companhia de todas as mulheres de
sua vida (a mãe, os amores do passado e do presente, as prostitutas) a lhe
deixar louco, quando então lança mão de um chicote ao som da “Cavalgada das
Valquírias”, de Richard Wagner –no simbolismo muito particular de Fellini (e um
tanto quanto destituído de correção política) as mulheres são então
sintetizadas no assombro de criaturas mitológicas, e na condição de seres quase
indomáveis.
Esse ato de perder-se nas divagações da própria
mente, e nos labirintos do próprio processo de criação é grande mote, contraditório
e fascinante, sólido e ao mesmo tempo abstrato, do qual se vale este
quintessencial filme de metalinguagem, que termina ilustrando mais uma das inúmeras
paixões da vida de Federico Fellini: O circo e toda sua maravilha de improvisos,
acidentes e cacofonias.
Ele dá então, à Marcello Mastroianni uma última
narração em off, e na voz imbuída de sentimento do ator, a obra de Fellini
encontra um desfecho no qual aceita a arte como o objeto miraculoso e
incompreensível que é.
Um filme que surge a partir
da incapacidade de fazê-lo.
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