quarta-feira, 26 de julho de 2017

8 e ½ de Fellini

Personificado com inquestionável primor por Marcello Mastroianni, o cineasta (e alter-ego absoluto de Fellini) Guido Anselmi não se vê nada confortável com a pressão de todos que o cercam em relação à execução de sua próxima obra que, em função de um bloqueio criativo provocado pelas expectativas alheias, ele não faz idéia de como será.
Sua fuga dessa opressão do mundo real e de suas exigências é, em termos literais, numa estação de águas (onde não tardam a encontrá-lo esposa, amante, amigos, produtores) e, mais tarde, em termos figurativos, nas lembranças do passado e na própria imaginação.
As mulheres que o rodeiam, se em outros tempos o inspiravam, servem também de poderosa fonte de perplexidade –some-se a isso praticidade melindrosa da esposa (Ainouk Aimée), o histrionismo insistente da amante (Sandra Milo), a beleza ofuscante ainda que opressora de sua musa (Claudia Cardilane), e as infinitas impressões daquelas que existem em sua recordação e que, à medida que a narrativa se estilhaça em diversos fragmentos líricos, se confundem com o que é real; e nesse sentido, é um primor a cena em que ele se vê dentro de uma casa de banhos na companhia de todas as mulheres de sua vida (a mãe, os amores do passado e do presente, as prostitutas) a lhe deixar louco, quando então lança mão de um chicote ao som da “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner –no simbolismo muito particular de Fellini (e um tanto quanto destituído de correção política) as mulheres são então sintetizadas no assombro de criaturas mitológicas, e na condição de seres quase indomáveis.
Esse ato de perder-se nas divagações da própria mente, e nos labirintos do próprio processo de criação é grande mote, contraditório e fascinante, sólido e ao mesmo tempo abstrato, do qual se vale este quintessencial filme de metalinguagem, que termina ilustrando mais uma das inúmeras paixões da vida de Federico Fellini: O circo e toda sua maravilha de improvisos, acidentes e cacofonias.
Ele dá então, à Marcello Mastroianni uma última narração em off, e na voz imbuída de sentimento do ator, a obra de Fellini encontra um desfecho no qual aceita a arte como o objeto miraculoso e incompreensível que é.
Um filme que surge a partir da incapacidade de fazê-lo.

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