Neste hábil trabalho –para muitos o melhor de
sua carreira –o diretor Blake Edwards, como sempre, se entrega a duas de suas
paixões: As apresentações artísticas e a comédia de erros, onde um só palco
serve de ambientação para divertidíssimos qüiproquós físicos, escapadelas,
entradas e saídas de cena, e um sem fim de subterfúgios cômicos que nunca mais
foram empregadas nas comédias que lhe sucederam.
Essa ampla conscientização dos meandros cênicos
está presente desde o início, quando Edwards nos apresenta a sua heroína, a
pobre, faminta e talentosa cantora Victoria Grant (a soberba Julie Andrews,
também esposa do diretor). O filme registra sua penúria na Paris dos anos 1930 –e
a própria produção foi, de fato, realizada nos estúdios Pinewood, da Inglaterra
em função de um afastamento de Edwards do âmbito hollywoodiano naquele início
dos anos 1980.
Apesar de seu imenso talento (que ela partilha
plenamente com a atriz que a interpreta e já fica evidente em sua primeira
aparição),Victoria ainda assim não consegue se destacar em meio à cena artística,
chegando até a armar uma engraçada estratégia para não sucumbir à fome: Numa
cena divertidíssima, ela tenta depositar uma barata (achada em seu apartamento
e deixada dentro de sua bolsa) na salada de um restaurante no qual aproveitou
para saciar sua fome, enquanto tenta desvencilhar-se de um garçom mal-criado
(Graham Stark cuja ótima participação será reaproveitada mais tarde).
Entre uma e outra confusão, Victoria cai nas
graças do artista Carole Todd (o sensacional Robert Preston) que decide promove-la partir de um determinado subterfúgio: Ela irá se passar por um homem, um certo
Conde Victor Grazinski que, por sua vez, se traveste de mulher em suas
apresentações. Esse mote, segundo ele, o do homem que canta travestido de
mulher, interessa mais aos proprietários de clubes e ao público ávido por uma
singularidade do que uma mulher que simplesmente canta.
Indo de encontro às suas palavras, de fato,
Victoria, sob a identidade do Conde Grazinski obtém um sucesso avassalador no cabaré
de André Cassell (John Rhys-Davies, o anão Gimli de “O Senhor dos Anéis”).
Tanto que atrai o interesse do gangster King Marchan (James Gardner),
relutante em crer que seu súbito objeto do desejo seja um homem, como também a
oposição da histérica, fútil e descontrolada namorada dele (Lesley Ann Warren,
hilária). Quando Victoria passa a demonstrar uma vontade genuína de
corresponder a Marchan, a situação ganha os ares de elegante comédia pastelão
que o diretor Edwards tão bem sabe operar. No entanto, há muito mais: Com um
roteiro refinado, gracioso e ferino, Edwards reflete despido de panfletagem e
de pieguice sobre os percalços doloridos do homossexualismo, do travestismo e do
feminismo, não escapando de um viés machista, fruto da época a que pertence,
mas mostrando definitivamente o quanto a vida é muito mais bem vivida quando não
se alimenta quaisquer preconceitos.
Em sua genialidade, Edwards não se isenta de
aproveitar o talento colossal de Julie e concede a ela a chance de brilhar
intensamente em diversos números musicais antológicos: O fulgurante “Le Jazz
Hot” que marca a primeira e memorável apresentação de Julie sob seu disfarce; “The
Shady Dame From Seville”, uma breve e bem-humorada parábola em ritmo espanhol
da farsa vivida pela protagonista; “You and Me”, um maravilhoso dueto entre
Julie e Preston, onde se vê, transbordante, a amizade que celebram; e “Crazy
World” que, além de trazer uma performance emocionante de Julie, demonstra a
competência técnica de Edwards fazendo com que a câmera execute um giro
esplêndido de 360°.
Há ainda “Chicago, Illinois”, um malicioso,
divertido e impagável número reservado para a personagem de Lesley Ann Warren.
Inspirando-se num antigo filme alemão da década
de 1930, “Victor ou Victória” foi uma reaproximação de Edwards da indústria
hollywoodiana que ele satirizou no irregular “S.O.B.”, mas que soube acolhê-lo depois
deste trabalho maravilhoso, digno de todas as ovações possíveis.
Uma obra rara, onde a transgressão se equilibra
ao humanismo, o atrevimento se equilibra ao objetivo puro e genuíno de deliciar
o expectador.
Um filme eterno para se
ver, rever, refletir e louvar.
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