segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Dogville

As casas e os muros que compõem a cidadezinha chamada Dogville não são mais que riscos de giz traçados no chão e, no entanto, apesar dessa brutal e árida (e proposital) encenação os personagens, quando encontram uma porta, batem nela como se lá estivesse (o expectador ouve apenas o som oco da batida).
Esse cenário de divisões invisíveis para o público, mas perfeitamente presente para os personagens é a forma mais incisiva e desconcertante que o diretor Lars VonTrier encontrou para expor em seus filmes os níveis alarmantes a que podem chegar a crueldade e a hipocrisia humanas. É para Dogville, afinal, que vem a foragida Grace (Nicole Kidman, num trabalho primoroso) tentando despistar o pai (James Caan) um gangster, em plena Depressão Americana dos anos 1930.
Grace encontra refúgio em Dogville e, aparentemente, bons amigos: Todos mostram-se solícitos a ela, e lhe providenciam acomodação, alimento e, se for o caso, até ocupação –fascinada pela hospitalidade, Grace retribui sendo o mais prestativa possível.
Porém, quando a estadia de Grace por lá extrapola a curta validade das boas maneiras, os moradores, tão provincianos e sorridentes, começam a mostrar suas garras: Eles impõem normas abusivas e expressam desdém com freqüência cada vez maior, a ponto de Grace se converter, de uma visitante bem recebida a uma presença paulatinamente explorada e inferiorizada.
É apenas o começo: A partir de um determinado ponto, a dignidade humana de Grace passará a valer tão pouco para os cidadão de Dogville que ela será acorrentada como um cão e sucessivamente estuprada por todos aqueles que se dispuserem a fazê-lo.
Quando a situação de Grace tiver atingido níveis insuportáveis –e o filme suas quase três horas de duração –os cidadãos, num ato final de covardia e traição, terão entregue Grace, cativa, ao seu pai mafioso. Completamente ignorantes da retribuição que os espera.
Uma das obras responsáveis pela pecha de ‘persona non grata’ atribuída à Lars Von Trier (e que só cresceu com o passar dos anos e com o lançamento de novos e ainda mais perturbadores filmes), “Dogville” é um exercício de estilo indigesto, contundente e ultrajante –e certamente feito com o total propósito de ser assim –não só irmanando-se às outras realizações de Von Trier, como às obras também chocantes do famigerado Píer Paolo Passolini.

Em seu despudor, Von Trier investiga o potencial para a perversidade exploratória e para o descaso intolerável que há em todos nós –inclusive, nos tornando cúmplices da catártica, porém terrível chacina com a qual seu filme se encerra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário