As casas e os muros que compõem a cidadezinha
chamada Dogville não são mais que riscos de giz traçados no chão e, no entanto,
apesar dessa brutal e árida (e proposital) encenação os personagens, quando
encontram uma porta, batem nela como se lá estivesse (o expectador ouve apenas
o som oco da batida).
Esse cenário de divisões invisíveis para o
público, mas perfeitamente presente para os personagens é a forma mais incisiva
e desconcertante que o diretor Lars VonTrier encontrou para expor em seus
filmes os níveis alarmantes a que podem chegar a crueldade e a hipocrisia
humanas. É para Dogville, afinal, que vem a foragida Grace (Nicole Kidman, num
trabalho primoroso) tentando despistar o pai (James Caan) um gangster, em plena
Depressão Americana dos anos 1930.
Grace encontra refúgio em Dogville e,
aparentemente, bons amigos: Todos mostram-se solícitos a ela, e lhe providenciam
acomodação, alimento e, se for o caso, até ocupação –fascinada pela
hospitalidade, Grace retribui sendo o mais prestativa possível.
Porém, quando a estadia de Grace por lá
extrapola a curta validade das boas maneiras, os moradores, tão provincianos e
sorridentes, começam a mostrar suas garras: Eles impõem normas abusivas e
expressam desdém com freqüência cada vez maior, a ponto de Grace se converter,
de uma visitante bem recebida a uma presença paulatinamente explorada e
inferiorizada.
É apenas o começo: A partir de um determinado
ponto, a dignidade humana de Grace passará a valer tão pouco para os cidadão de
Dogville que ela será acorrentada como um cão e sucessivamente estuprada por
todos aqueles que se dispuserem a fazê-lo.
Quando a situação de Grace tiver atingido
níveis insuportáveis –e o filme suas quase três horas de duração –os cidadãos,
num ato final de covardia e traição, terão entregue Grace, cativa, ao seu pai
mafioso. Completamente ignorantes da retribuição que os espera.
Uma das obras responsáveis pela pecha de
‘persona non grata’ atribuída à Lars Von Trier (e que só cresceu com o passar
dos anos e com o lançamento de novos e ainda mais perturbadores filmes),
“Dogville” é um exercício de estilo indigesto, contundente e ultrajante –e certamente
feito com o total propósito de ser assim –não só irmanando-se às outras
realizações de Von Trier, como às obras também chocantes do famigerado Píer
Paolo Passolini.
Em seu despudor, Von Trier investiga o
potencial para a perversidade exploratória e para o descaso intolerável que há
em todos nós –inclusive, nos tornando cúmplices da catártica, porém terrível
chacina com a qual seu filme se encerra.
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