Já se percebia no diretor Lee Daniels uma
capacidade para desconcertar e surpreender em igual medida em um de seus primeiros
filmes, “Matadores de Aluguel”, com Cuba Gooding Jr. e Helen Mirren. Era
questão de tempo até que ele encontrasse o caminho para que grandes filmes
viessem a surgir a partir daquele estilo desigual.
Não existem quaisquer dúvidas de que “Preciosa”
é esse trabalho.
Todavia, o único –o fato de que o auge
artístico de Lee Daniels se resume a um único filme (os outros foram “O Mordomo
da Casa Branca”, com Forest Whitaker, e o mediano “Obsessão”, com Nicole
Kidman) se deve possivelmente pelos excessos melodramáticos que caracterizam
suas narrativas, pela mal disfarçada intenção de chocar com expedientes óbvios
e pela negligência à qualquer sutileza.
Na história de Clareece Preciosa Jones
(Gabourey Sidibe, estupenda), contudo, esses elementos encontram uma harmonia
perfeita para valorizar o poder de sua narrativa. Preciosa –como ela é chamada
–é adolescente, negra, pobre e obesa –todas características que sinalizam ao
conceito da discriminação.
Aos 16 anos, ela está grávida pela segunda vez
de seu próprio pai. Nessa condição está prestes a ser expulsa da escola. O que
lhe dá poucas opções exceto permanecer como uma espécie de empregada de sua mãe
cruel e beligerante (Mo’nique, num grande trabalho) que a xinga, menospreza e
maltrata o tempo todo. Não é à toa, portanto, que a estrutura psicológica de
Preciosa se vê esmagada entre sua baixa auto-estima, as recriminações
horripilantes da própria mãe e a resignação consciente em meio a um ciclo
vicioso.
Ao freqüentar uma classe especial e receber a
orientação de uma professora austera e socialmente solícita (Paula Patton, de "Missão Impossível-Protocolo Fantasma"),
Preciosa descobre formas de verbalizar o próprio infortúnio, e ver em si mesma
a capacidade para se desvencilhar dos infortúnios nocivos de sua vida. Ela se
recusa, a despeito de tudo –e de outras descobertas trágicas que ainda virão –a
aceitar o ingrato papel que lhe foi reservado nesse angustiante painel social
da América.
Há que se reconhecer que o grande mérito na
direção de Lee Daniels é criar uma bela e empolgante narrativa que de certa
maneira seduz o expectador sem jamais evitar o lado amargo e adverso da
realidade que retrata: A vida de Preciosa em suas facetas mais terríveis e
inapeláveis se descortina diante do público ao longo dos cento e nove minutos
de filme –e quando parece que nada pode ficar pior, o roteiro escrito por
Geoffrey Fletcher (e vencedor do Oscar) consegue, deveras, tornar tudo ainda
mais irreversível e aflitivo –no entanto, esse índice elevado de tragédia não
se traduz numa sensação desconfortável ou desgastante; a condução de Daniels
prima por ritmo bem calculado, cenas inesperadas e inusitadas (algumas com
referências a números musicais!) e uma criatividade que dribla o mal-estar para
em vez disso agregar ao filme um caráter de quase fábula.
Se nem todos os críticos
concordam que “Preciosa”, enquanto obra de cunho social, atende a um retrato
realmente válido, pertinente e construtivo da dura realidade, isso é um assunto
mais profundo, o quê vem aqui importar é que Daniels fez o filme pelo qual
certamente será lembrado, um drama hábil e admirável amparado, sobretudo, em
magistrais interpretações de Gabourey Sidibe e Mo'nique (vencedora do Oscar de
Melhor Atriz Coadjuvante graças a um monólogo poderoso e aterrador próximo ao
desfecho do filme).
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