quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Preciosa

Já se percebia no diretor Lee Daniels uma capacidade para desconcertar e surpreender em igual medida em um de seus primeiros filmes, “Matadores de Aluguel”, com Cuba Gooding Jr. e Helen Mirren. Era questão de tempo até que ele encontrasse o caminho para que grandes filmes viessem a surgir a partir daquele estilo desigual.
Não existem quaisquer dúvidas de que “Preciosa” é esse trabalho.
Todavia, o único –o fato de que o auge artístico de Lee Daniels se resume a um único filme (os outros foram “O Mordomo da Casa Branca”, com Forest Whitaker, e o mediano “Obsessão”, com Nicole Kidman) se deve possivelmente pelos excessos melodramáticos que caracterizam suas narrativas, pela mal disfarçada intenção de chocar com expedientes óbvios e pela negligência à qualquer sutileza.
Na história de Clareece Preciosa Jones (Gabourey Sidibe, estupenda), contudo, esses elementos encontram uma harmonia perfeita para valorizar o poder de sua narrativa. Preciosa –como ela é chamada –é adolescente, negra, pobre e obesa –todas características que sinalizam ao conceito da discriminação.
Aos 16 anos, ela está grávida pela segunda vez de seu próprio pai. Nessa condição está prestes a ser expulsa da escola. O que lhe dá poucas opções exceto permanecer como uma espécie de empregada de sua mãe cruel e beligerante (Mo’nique, num grande trabalho) que a xinga, menospreza e maltrata o tempo todo. Não é à toa, portanto, que a estrutura psicológica de Preciosa se vê esmagada entre sua baixa auto-estima, as recriminações horripilantes da própria mãe e a resignação consciente em meio a um ciclo vicioso.
Ao freqüentar uma classe especial e receber a orientação de uma professora austera e socialmente solícita (Paula Patton, de "Missão Impossível-Protocolo Fantasma"), Preciosa descobre formas de verbalizar o próprio infortúnio, e ver em si mesma a capacidade para se desvencilhar dos infortúnios nocivos de sua vida. Ela se recusa, a despeito de tudo –e de outras descobertas trágicas que ainda virão –a aceitar o ingrato papel que lhe foi reservado nesse angustiante painel social da América.
Há que se reconhecer que o grande mérito na direção de Lee Daniels é criar uma bela e empolgante narrativa que de certa maneira seduz o expectador sem jamais evitar o lado amargo e adverso da realidade que retrata: A vida de Preciosa em suas facetas mais terríveis e inapeláveis se descortina diante do público ao longo dos cento e nove minutos de filme –e quando parece que nada pode ficar pior, o roteiro escrito por Geoffrey Fletcher (e vencedor do Oscar) consegue, deveras, tornar tudo ainda mais irreversível e aflitivo –no entanto, esse índice elevado de tragédia não se traduz numa sensação desconfortável ou desgastante; a condução de Daniels prima por ritmo bem calculado, cenas inesperadas e inusitadas (algumas com referências a números musicais!) e uma criatividade que dribla o mal-estar para em vez disso agregar ao filme um caráter de quase fábula.
Se nem todos os críticos concordam que “Preciosa”, enquanto obra de cunho social, atende a um retrato realmente válido, pertinente e construtivo da dura realidade, isso é um assunto mais profundo, o quê vem aqui importar é que Daniels fez o filme pelo qual certamente será lembrado, um drama hábil e admirável amparado, sobretudo, em magistrais interpretações de Gabourey Sidibe e Mo'nique (vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante graças a um monólogo poderoso e aterrador próximo ao desfecho do filme).

Nenhum comentário:

Postar um comentário