terça-feira, 17 de outubro de 2017

Gangues de Nova York

A primeira colaboração entre Leonardo Dicaprio e Martin Scorsese marcou um período em que o astro começava enfim a deixar a sombra do sucesso esmagador de “Titanic” para trás e construía uma bela carreira –no mesmo ano, ele lançou o excelente “Prenda-Me Se For Capaz”, de Steven Spielberg.
Na filmografia de Scorsese, por sua vez, “Gangues de Nova York” dialoga com “A Época da Inocência”, por se ambientarem na mesma metrópole e no mesmo período de tempo (o Século 19), embora pareçam tratar de assuntos e temas de radical diferenciação –e a presença de Daniel Day-Lewis no elenco de ambas as produções não deve, por isso mesmo, ser tratada como coincidência.
Este foi um projeto longamente acalentado por Scorsese –as primeiras tentativas de viabilizá-lo datam do fim da década de 1970! –talvez, por refletir com pertinência os seus interesses como contador de histórias.
Como é inerente ao seu vigor, Scorsese observa o submundo corrupto da cidade de Nova York, ainda em estado transitório do quê viria a ser –uma cidade entrecortada pelos fortes contrastes culturais trazidos por imigrantes das mais diversas partes do mundo. É para lá que vai o jovem Amsterdam Vallom (Dicaprio, cada vez mais evoluído como ator), com a obscura intenção de vingar a morte de seu pai pelas mãos de Bill The Butcher, o atual líder da estrutura de poder vigente.
E a cena de batalha que responde como prólogo do filme, quando Bill mata o pai de Vallom (vivido por Liam Neeson) é, já ela, de um registro arrepiante e sem concessões da brutalidade como só um mestre é capaz de fazê-lo.
Bill (interpretado com preciosismo invulgar por Day-Lewis) é um personagem intrigante: É a essência do mal, e nada em seu comportamento psicótico esconde isso, mas nutre um senso de honra –assim como um afeto aos que lhe são próximos e confiáveis –que lhe confere inesperada humanidade: Ele realiza, por exemplo, uma cerimônia anual, em homenagem ao seu inimigo assassinado, o pai de Amsterdam Vallom. O próprio Vallom, por sua vez, durante algum tempo, cai em suas graças, virando seu braço-direito.
Bill ganha também, de Scorsese e do ator que o interpreta, uma caracterização algo destoante, um aspecto que o torna sempre uma figura intrusiva em cada uma das imagens em que aparece: Essa sensação é passada nos detalhes meticulosamente escolhidos em seu figurino (as opções de cores evidenciam tanto a falta de conhecimento do personagem em como se vestir adequadamente, como sua não declarada intenção de pertencer à uma classe mais alta que não é a sua), no movimento brilhantemente estudado de Day-Lewis (que para variar emprega uma técnica bem equilibrada e apropriadamente espalhafatosa em sua atuação), e até em detalhes que poderiam soar cartunescos numa outra composição (como a íris artificial num dos olhos de Bill).
São todos esforços conscientes e inteligentes que só fazem bem à história: Por conta deles, em nenhum momento essa humanização de Bill tira o foco (e a expectativa, ou até torcida) do expectador para o cerne da narrativa: A vingança de Amsterdam Vallom.
Para levar a cabo essa vingança, entretanto, Vallom compreende que terá de envolver-se com os mecanismos políticos e sociais dessa cidade ebuliente que cresce a partir dos imigrantes que recebe em quantidade maciça nos seus portos.
É assim que, na medida em que conta a história do embate brutal entre dois homens em níveis que vão se estreitando do cordial e político até o físico e nada civilizado, Scorsese reflete sobre a mentalidade intrinsecamente animalesca daqueles audazes pioneiros que moldaram a América, sobretudo, uma de suas mais emblemáticas cidades, Nova York. Na abordagem grandiosa que seu épico vigoroso busca fazer, e na complexidade loquaz e ramificada do trecho histórico que relata, o diretor acaba inferindo por momentos que oscilam em impressão na condução de seu trabalho, ora confuso, ora eletrizante, mas ele jamais deixa que se perca uma apurada visão artística sobre todas as facetas que se dispõe a observar e, mais do que isso, jamais perde o foco da analogia essencial que, no fim das contas, seu filme procura estabelecer, como bem mostra a cena final onde o diretor avança no tempo para evidenciar as torres gêmeas do World Trade Center em seu enquadramento: Era então o ano de 2002, e o 11 de Setembro ainda era uma ferida aberta pedindo por tratamento (ainda que ele fosse existencial).

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