A primeira colaboração entre Leonardo Dicaprio
e Martin Scorsese marcou um período em que o astro começava enfim a deixar a
sombra do sucesso esmagador de “Titanic” para trás e construía uma bela
carreira –no mesmo ano, ele lançou o excelente “Prenda-Me Se For Capaz”, de
Steven Spielberg.
Na filmografia de Scorsese, por sua vez,
“Gangues de Nova York” dialoga com “A Época da Inocência”, por se ambientarem
na mesma metrópole e no mesmo período de tempo (o Século 19), embora pareçam
tratar de assuntos e temas de radical diferenciação –e a presença de Daniel
Day-Lewis no elenco de ambas as produções não deve, por isso mesmo, ser tratada
como coincidência.
Este foi um projeto longamente acalentado por
Scorsese –as primeiras tentativas de viabilizá-lo datam do fim da década de
1970! –talvez, por refletir com pertinência os seus interesses como contador de
histórias.
Como é inerente ao seu vigor, Scorsese observa
o submundo corrupto da cidade de Nova York, ainda em estado transitório do quê
viria a ser –uma cidade entrecortada pelos fortes contrastes culturais trazidos
por imigrantes das mais diversas partes do mundo. É para lá que vai o jovem
Amsterdam Vallom (Dicaprio, cada vez mais evoluído como ator), com a obscura
intenção de vingar a morte de seu pai pelas mãos de Bill The Butcher, o atual
líder da estrutura de poder vigente.
E a cena de batalha que responde como prólogo
do filme, quando Bill mata o pai de Vallom (vivido por Liam Neeson) é, já ela,
de um registro arrepiante e sem concessões da brutalidade como só um mestre é
capaz de fazê-lo.
Bill (interpretado com preciosismo invulgar por
Day-Lewis) é um personagem intrigante: É a essência do mal, e nada em seu
comportamento psicótico esconde isso, mas nutre um senso de honra –assim como
um afeto aos que lhe são próximos e confiáveis –que lhe confere inesperada
humanidade: Ele realiza, por exemplo, uma cerimônia anual, em homenagem ao seu
inimigo assassinado, o pai de Amsterdam Vallom. O próprio Vallom, por sua vez,
durante algum tempo, cai em suas graças, virando seu braço-direito.
Bill ganha também, de Scorsese e do ator que o
interpreta, uma caracterização algo destoante, um aspecto que o torna sempre
uma figura intrusiva em cada uma das imagens em que aparece: Essa sensação é
passada nos detalhes meticulosamente escolhidos em seu figurino (as opções de
cores evidenciam tanto a falta de conhecimento do personagem em como se vestir
adequadamente, como sua não declarada intenção de pertencer à uma classe mais
alta que não é a sua), no movimento brilhantemente estudado de Day-Lewis (que
para variar emprega uma técnica bem equilibrada e apropriadamente espalhafatosa
em sua atuação), e até em detalhes que poderiam soar cartunescos numa outra
composição (como a íris artificial num dos olhos de Bill).
São todos esforços conscientes e inteligentes
que só fazem bem à história: Por conta deles, em nenhum momento essa
humanização de Bill tira o foco (e a expectativa, ou até torcida) do expectador
para o cerne da narrativa: A vingança de Amsterdam Vallom.
Para levar a cabo essa vingança, entretanto,
Vallom compreende que terá de envolver-se com os mecanismos políticos e sociais
dessa cidade ebuliente que cresce a partir dos imigrantes que recebe em quantidade
maciça nos seus portos.
É assim que, na medida em
que conta a história do embate brutal entre dois homens em níveis que vão se
estreitando do cordial e político até o físico e nada civilizado, Scorsese
reflete sobre a mentalidade intrinsecamente animalesca daqueles audazes
pioneiros que moldaram a América, sobretudo, uma de suas mais emblemáticas
cidades, Nova York. Na abordagem grandiosa que seu épico vigoroso busca fazer,
e na complexidade loquaz e ramificada do trecho histórico que relata, o diretor
acaba inferindo por momentos que oscilam em impressão na condução de seu
trabalho, ora confuso, ora eletrizante, mas ele jamais deixa que se perca uma
apurada visão artística sobre todas as facetas que se dispõe a observar e, mais
do que isso, jamais perde o foco da analogia essencial que, no fim das contas,
seu filme procura estabelecer, como bem mostra a cena final onde o diretor
avança no tempo para evidenciar as torres gêmeas do World Trade Center em seu
enquadramento: Era então o ano de 2002, e o 11 de Setembro ainda era uma ferida
aberta pedindo por tratamento (ainda que ele fosse existencial).
Nenhum comentário:
Postar um comentário