No mundo espirituoso, humanista e desigual no
qual Hayao Myiazaki gosta de ambientar suas histórias, os arquétipos mais
enraizados no subconsciente do público são constantemente colocados em
questionamento por personagens adoráveis.
Tome o exemplo da encantadora protagonista
deste longa-metragem, Kiki. Ela é uma bruxa, como também é uma bruxa sua mãe,
todavia, passa longe de sua caracterização qualquer uma das convenções
diabólicas às quais as bruxas são relacionadas em tantos filmes e animações.
A bondade é uma opção que os personagens de
Myiazaki abraçam com freqüência quase automática. Há algo de lógico nesse
raciocínio salutar e, quem viu qualquer trabalho de Myiazaki, pode notar que a
lógica possui para ele uma finalidade narrativa até: Embora nunca se furtem de
usar magia (a nobre exceção talvez seja o realista “Vidas Ao Vento”), seus
enredos obedecem um sentido prático que seu realizador estabelece por meio de
regras que surgem muito particularmente, mas que se transmutam e evoluem a cada
projeto.
No caso, Kiki, já com seus treze anos de idade,
deve honrar uma tradição ancestral das bruxas que consiste em partir a bordo de
sua vassoura voadora (acompanhada de seu opinativo gatinho falante, Deedee) e
encontrar uma cidade na qual deve praticar solitariamente sua magia por um ano
–apesar dessa afirmação no roteiro, há também a menção desde o início de que a
cidade que ela escolher será aquela na qual ela irá morar dali por diante.
Depois de um vôo aleatório numa noite calma
–seguido de uma imprevista viagem clandestina de trem após ser surpreendida por
uma tempestade –Kiki chega à uma bonita cidade turística à beira-mar (que os
traços inspirados de Myiazaki conferem elementos de alguns dos mais belos
cartões-postais da Europa), e arruma amizade com a dona da padaria local. A
medida que reforça os laços de amizade com aqueles que vai conhecendo, Kiki
inicia um trabalho de entregadora a serviço da padaria, auxiliada por sua
capacidade de voar em vassoura (o quê não significa que um ou outro contratempo
não apareça).
Ela também conhece um rapazinho com quem inicia
um relutante relacionamento, além de uma série de outros personagens. Quando
então descobre um lapso em seus poderes, que começam a minguar.
O filme se passa durante um ano da vida de
Kiki, ao fim do qual ela terá aprendido, acima de tudo, as peculiaridades de se
viver sozinha e independente. De novo, mesmo havendo a afirmação de que ela
deveria ficar lá por um ano, fica a impressão de que aquele é o lugar que ela
escolheu para viver o resto da vida –tal e qual é dito a respeito da mãe dela
no início.
É um aspecto que Myiazaki parece bastante
satisfeito em manter dúbio e não revelar por completo ao expectador –ele sempre
deixa lacunas para que sejam preenchidas; um bom exemplo é quando Kiki começa a
perder seus poderes: Nunca fica claro o porquê (Seria uma fase natural do
crescimento de uma bruxa? Seria uma espécie de insegurança a dominá-la?), assim
como também não fica exatamente claro porque ela os recupera.
Ainda que incapaz de atingir o patamar de
genialidade ímpar que Myiazaki conseguiu em “Meu Amigo Totoro” –e seria demais
esperar algo assim mesmo –“O Serviço de Entregas da Kiki” preserva todo o
fascínio e o encanto singular que definem suas obras, na busca estóica de uma narrativa
que emule impressões tão abstratas quando uma recordação de infância: Essa
intenção existencial se percebe na forte atmosfera lúdica de cenas como a bela
passagem que abre o filme, com Kiki absorta, deitada em um grama a olhar as
nuvens no céu e ouvir uma música no rádio, ou nos contratempos divertidos,
inofensivos e pueris de Kiki ao tentar se adaptar à sua rotina de entregadora.
Como muitas das obras de
Myiazaki, um trabalho cheio de vivacidade e carinho construído de pequenos e
preciosos detalhes.
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