segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Vergonha

Há que se ficar intrigado com o quê o diretor sueco Ingmar Bergman, com seu repertório notável e observações e minúcias, é capaz de fazer ao realizar um filme de guerra. Ou quase isso.
Dentro de seu estilo contemplativo e indissociavelmente voltado às angústias íntimas, ele fez um trabalho que reflete suas inquietações de sempre.
Na cena que inicia o filme –ele começa, na verdade, nos créditos iniciais mostrados numa tela preta enquanto sons característicos de batalha substituem a trilha sonora –o casal Eva (a linda Liv Ullmann) e Jan Rosenberg (Max Von Sydow, sempre brilhante) acorda numa rotina aparentemente normal. Bergman até instiga um pouco o público com relances da espetacular nudez de Liv neste momento,mas o fato é que, a despeito da guerra que se desenrola em seu país, os personagens são meros músicos na Sinfonia Filarmônica convertidos em moradores do campo cujo comprometimento com o conflito e mais ainda suas implicações políticas, são meros comentários paralelos em seu cotidiano.
Jan (a metade mais complacente, afável e hesitante do casal, como notaremos mais a frente) conta para Eva sobre um sonho que teve, e dela recebe pouco mais que indiferença.
Bergman registra-os como um casal absolutamente normal. Eles implicam, fazem as pazes, discutem amenidades. A guerra aparece como um detalhe irrisório do dia-a-dia, em menções vagas do que se ouviu no rádio, questões mal abordadas num diálogo corriqueiro. Ou numa breve cena em que pegam uma balsa ao lado do prefeito, onde notamos soldados perambulando ao fundo –uma guerra que, é sempre bom lembrar, nunca fica, nem ficará, devidamente determinada de qual guerra se trata, historicamente falando. O quê Bergman faz, portanto, é uma analogia à guerra. À todas as guerras.
Esse primeiro ato, essencialmente doméstico, de certa maneira engana o expectador: Supõe-se que será essa a postura de Bergman em relação à guerra e a sua interferência na vida de pessoas normais, contudo, numa brusca sucessão de acontecimentos ele revela, ao público e aos seus protagonistas, a proximidade alarmante e exasperante da guerra. Eva e Jan mal têm tempo de entrar em seu carro com seus pertences e tudo o mais, e bombas explodem insanamente ao redor de sua fazenda. Soldados passam a contaminar a paisagem e o perigo se torna mais palpável do que nunca.
Eva e Jan são levados à um local onde o próprio governo busca discernir patriotas de traidores –Eva prestou, meio à força, uma entrevista aos adversários, que foi depois adulterada. Ela e Jan estão sob o risco do fuzilamento.
Em algum momento de sua aflição, o casal é salvo por um conhecido político (Gunnar Björnstrand) que, desejoso de gratidão, passa a assediar sua casa e termina, com sua presença taxativa e insistente, se tornando amante de Eva, o quê dá o ponto de partida mais enfático na alteração da dinâmica dos dois: Jan, de passivo, acuado e amedrontado, se torna dissimulado e vingantivo –ele mente sobre o dinheiro que o político lhes deu pouco antes do adultério e, por conta disso, soldados inimigos o forçam a atirar contra ele, matando-o. Jan se torna alguém impiedoso (ele não poupa sequer a vida de um jovem soldado desertor que lhes pediu ajuda), de uma brutalidade moldada pela guerra, mas, sobretudo pelas circunstâncias corrosivas a que ele e sua esposa foram submetidos.
Em fuga dessa guerra de desgraças, eles seguem a pista deixada pelo desertor antes de Jan matá-lo, e encontram uma balsa partindo para o mar junto de outros refugiados sedentos e famintos. Insalubre, Bergman nega ao público e aos protagonistas um desfecho estável e reconfortante, deixando-os na penúria de um percurso inconclusivo.
Ao final –de um arremate narrativo de simetria perfeita com o seu começo –a relação entre Jan e Eva terá se transformado: É ela, agora, quem se mostra a parte mais complacente do casal, e é ela quem então experimenta a indiferença de Jan ao tentar narrar a ele um sonho que teve.

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