Há que se ficar intrigado com o quê o diretor
sueco Ingmar Bergman, com seu repertório notável e observações e minúcias, é
capaz de fazer ao realizar um filme de guerra. Ou quase isso.
Dentro de seu estilo contemplativo e
indissociavelmente voltado às angústias íntimas, ele fez um trabalho que
reflete suas inquietações de sempre.
Na cena que inicia o filme –ele começa, na
verdade, nos créditos iniciais mostrados numa tela preta enquanto sons
característicos de batalha substituem a trilha sonora –o casal Eva (a linda Liv
Ullmann) e Jan Rosenberg (Max Von Sydow, sempre brilhante) acorda numa rotina
aparentemente normal. Bergman até instiga um pouco o público com relances da espetacular
nudez de Liv neste momento,mas o fato é que, a despeito da guerra que se
desenrola em seu país, os personagens são meros músicos na Sinfonia Filarmônica
convertidos em moradores do campo cujo comprometimento com o conflito e mais
ainda suas implicações políticas, são meros comentários paralelos em seu
cotidiano.
Jan (a metade mais complacente, afável e
hesitante do casal, como notaremos mais a frente) conta para Eva sobre um sonho
que teve, e dela recebe pouco mais que indiferença.
Bergman registra-os como um casal absolutamente
normal. Eles implicam, fazem as pazes, discutem amenidades. A guerra aparece
como um detalhe irrisório do dia-a-dia, em menções vagas do que se ouviu no
rádio, questões mal abordadas num diálogo corriqueiro. Ou numa breve cena em
que pegam uma balsa ao lado do prefeito, onde notamos soldados perambulando ao
fundo –uma guerra que, é sempre bom lembrar, nunca fica, nem ficará,
devidamente determinada de qual guerra se trata, historicamente falando. O quê
Bergman faz, portanto, é uma analogia à guerra. À todas as guerras.
Esse primeiro ato, essencialmente doméstico, de
certa maneira engana o expectador: Supõe-se que será essa a postura de Bergman
em relação à guerra e a sua interferência na vida de pessoas normais, contudo,
numa brusca sucessão de acontecimentos ele revela, ao público e aos seus
protagonistas, a proximidade alarmante e exasperante da guerra. Eva e Jan mal
têm tempo de entrar em seu carro com seus pertences e tudo o mais, e bombas
explodem insanamente ao redor de sua fazenda. Soldados passam a contaminar a
paisagem e o perigo se torna mais palpável do que nunca.
Eva e Jan são levados à um local onde o próprio
governo busca discernir patriotas de traidores –Eva prestou, meio à força, uma
entrevista aos adversários, que foi depois adulterada. Ela e Jan estão sob o
risco do fuzilamento.
Em algum momento de sua aflição, o casal é
salvo por um conhecido político (Gunnar Björnstrand) que, desejoso de gratidão,
passa a assediar sua casa e termina, com sua presença taxativa e insistente, se
tornando amante de Eva, o quê dá o ponto de partida mais enfático na alteração
da dinâmica dos dois: Jan, de passivo, acuado e amedrontado, se torna
dissimulado e vingantivo –ele mente sobre o dinheiro que o político lhes deu
pouco antes do adultério e, por conta disso, soldados inimigos o forçam a
atirar contra ele, matando-o. Jan se torna alguém impiedoso (ele não poupa
sequer a vida de um jovem soldado desertor que lhes pediu ajuda), de uma
brutalidade moldada pela guerra, mas, sobretudo pelas circunstâncias corrosivas
a que ele e sua esposa foram submetidos.
Em fuga dessa guerra de desgraças, eles seguem
a pista deixada pelo desertor antes de Jan matá-lo, e encontram uma balsa
partindo para o mar junto de outros refugiados sedentos e famintos. Insalubre,
Bergman nega ao público e aos protagonistas um desfecho estável e
reconfortante, deixando-os na penúria de um percurso inconclusivo.
Ao final –de um arremate
narrativo de simetria perfeita com o seu começo –a relação entre Jan e Eva terá
se transformado: É ela, agora, quem se mostra a parte mais complacente do
casal, e é ela quem então experimenta a indiferença de Jan ao tentar narrar a
ele um sonho que teve.
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