A memória. Talvez, seja esse o grande tópico em
torno do qual o cinema se expressa como arte. E em “Amarcord” é possível
encontrar a arte traduzida por um dos grandes realizadores de todos os tempos,
o italiano Federico Fellini, numa ode ao poder reformulador da memória.
“Amarcord” fala de uma memória que regressa
anos depois ao indivíduo que a lembra e, como toda recordação imbuída de
nostalgia, ela vem modificada, embelezada, aparentando então pertencer a uma
realidade distinta e melhor daquela que nos é mais próxima.
Esse entendimento de uma aura que romantiza a
memória é um dos instantes de maior genialidade de “Amarcord”, mas não é o
único.
Titta (Bruno Zanin) é o jovem alter-ego de
Fellini, e pelos olhos dele, na maioria das vezes, transcorrem as imagens de um
passado na cidade de Rimini onde ele viveu, e que impregnou-se em suas recordações
com um carinho perene.
São episódios fragmentados, lembranças que
passeiam da comédia ao drama, do pastelão ao intimismo, em seqüências
memoráveis como o tio maluco que, num passeio de campo junto de toda a família
resolve subir em uma árvore e gritar, “Voglio una donna!” –e de lá só sair de,
de fato, lhe arrumarem uma mulher (!); as peripécias afetivas de Gradisca (a
bela Magali Noel), o inacessível objeto do desejo de Titta que aparece em pelo
menos três momentos do filme (um delírio dentro de um cinema inspirado pelo
romantismo de um filme em exibição, ao lado do próprio Titta; uma pequena
aventura sexual –narrada com inocência, mas cheia de malícia nas entrelinhas
–dentro do refinado hotel local; e quando junta-se a Titta e outros cidadãos de
Rimini numa brincadeira na neve); ou as histórias pouco confiáveis do contador
de mentiras, Biscein (Gennaro Ombra).
Através dessa estrutura, repartida em
fragmentos, Fellini oferece sua percepção afetiva sobre muitas das instituições
que abrigam os acontecimentos: A família (toda espalhafatosa e barulhenta), a
política (o regime fascista acrescenta absurdo ao cotidiano), a religião (uma
sucessão impagável de confissões mostra a descontraída expiação juvenil) e a
escola (uma coleção de professores caricatos; a repressão moral quase sempre
como alvo do escárnio e da indiferença dos moleques).
São essas as impressões do jovem Fellini. Não
do mundo como ele o vê, mas talvez o mundo como um dia ele viu, modificado pelo
prisma da ingenuidade e da pureza que, no retrato sentimental que ele pinta
aqui, é também uma obra de fantasia: É preciso abraçar a irrealidade da
reconstituição propositadamente lúdica, cuja beleza atinge seu ápice na cena da
procissão de barcos onde a população ao alto mar para testemunhar a passagem do
transatlântico Rex.
Tão abrangente e
paradigmático é “Amarcord” que ele parece sintetizar todo um cinema por meio de
sua mera existência (é comum ele ser a referência quando todo e qualquer
cineasta deseja revisitar sua própria infância, como Louis Malle, em “Adeus,Meninos”, ou John Boorman, em “Esperança e Glória”) e ser, ele próprio, uma
fonte de inspiração e sentimento até mesmo para outros clássicos do cinema
italiano: Não é por acaso que muitos momentos de “Amarcord” remetem à mesma
atmosfera de nostalgia que, anos depois, embelezou e engrandeceu “Cinema
Paradiso”, ou que a aura e as circunstâncias que cercam a personagem de
Gradisca são as bases para o que se vê também em “Malena”.
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