segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Amarcord

A memória. Talvez, seja esse o grande tópico em torno do qual o cinema se expressa como arte. E em “Amarcord” é possível encontrar a arte traduzida por um dos grandes realizadores de todos os tempos, o italiano Federico Fellini, numa ode ao poder reformulador da memória.
“Amarcord” fala de uma memória que regressa anos depois ao indivíduo que a lembra e, como toda recordação imbuída de nostalgia, ela vem modificada, embelezada, aparentando então pertencer a uma realidade distinta e melhor daquela que nos é mais próxima.
Esse entendimento de uma aura que romantiza a memória é um dos instantes de maior genialidade de “Amarcord”, mas não é o único.
Titta (Bruno Zanin) é o jovem alter-ego de Fellini, e pelos olhos dele, na maioria das vezes, transcorrem as imagens de um passado na cidade de Rimini onde ele viveu, e que impregnou-se em suas recordações com um carinho perene.
São episódios fragmentados, lembranças que passeiam da comédia ao drama, do pastelão ao intimismo, em seqüências memoráveis como o tio maluco que, num passeio de campo junto de toda a família resolve subir em uma árvore e gritar, “Voglio una donna!” –e de lá só sair de, de fato, lhe arrumarem uma mulher (!); as peripécias afetivas de Gradisca (a bela Magali Noel), o inacessível objeto do desejo de Titta que aparece em pelo menos três momentos do filme (um delírio dentro de um cinema inspirado pelo romantismo de um filme em exibição, ao lado do próprio Titta; uma pequena aventura sexual –narrada com inocência, mas cheia de malícia nas entrelinhas –dentro do refinado hotel local; e quando junta-se a Titta e outros cidadãos de Rimini numa brincadeira na neve); ou as histórias pouco confiáveis do contador de mentiras, Biscein (Gennaro Ombra).
Através dessa estrutura, repartida em fragmentos, Fellini oferece sua percepção afetiva sobre muitas das instituições que abrigam os acontecimentos: A família (toda espalhafatosa e barulhenta), a política (o regime fascista acrescenta absurdo ao cotidiano), a religião (uma sucessão impagável de confissões mostra a descontraída expiação juvenil) e a escola (uma coleção de professores caricatos; a repressão moral quase sempre como alvo do escárnio e da indiferença dos moleques).
São essas as impressões do jovem Fellini. Não do mundo como ele o vê, mas talvez o mundo como um dia ele viu, modificado pelo prisma da ingenuidade e da pureza que, no retrato sentimental que ele pinta aqui, é também uma obra de fantasia: É preciso abraçar a irrealidade da reconstituição propositadamente lúdica, cuja beleza atinge seu ápice na cena da procissão de barcos onde a população ao alto mar para testemunhar a passagem do transatlântico Rex.
Tão abrangente e paradigmático é “Amarcord” que ele parece sintetizar todo um cinema por meio de sua mera existência (é comum ele ser a referência quando todo e qualquer cineasta deseja revisitar sua própria infância, como Louis Malle, em “Adeus,Meninos”, ou John Boorman, em “Esperança e Glória”) e ser, ele próprio, uma fonte de inspiração e sentimento até mesmo para outros clássicos do cinema italiano: Não é por acaso que muitos momentos de “Amarcord” remetem à mesma atmosfera de nostalgia que, anos depois, embelezou e engrandeceu “Cinema Paradiso”, ou que a aura e as circunstâncias que cercam a personagem de Gradisca são as bases para o que se vê também em “Malena”.

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