O diretor Brian De Palma construiu toda uma
carreira amparada num estilo peculiar no qual seu suspense reverenciava –e sob
um certo viés, aprimorava –as características herdadas de grandes influências
como Alfred Hitchcock ou Michelangelo Antonioni. A veracidade dessa afirmação
transforma “Femme Fatale” num exemplar profundamente significativo em sua
filmografia, uma vez que ele representa ser um compêndio de todas essas
orientações que definiram De Palma como cineasta nas últimas quatro décadas.
Com efeito, a trama, confusa e improvável,
acaba sendo o de menos neste filme onde ele exercita sua maneira particular de
enxergar a construção do suspense e explora as inúmeras variações do cinema que
criou –e que, não obstante ter se originado a partir de referências declaradas,
gerou assim toda uma obra de luz própria. Soa como um ineditismo próprio e
único de De Palma, por exemplo, quando sua narrativa ousa empregar recursos em
voga desde os anos 1970 (porém, desde então deixados de lado), como a divisão
de tela.
Audacioso, atrevido e um tanto sarcástico, De
Palma já inicia seu filme numa saborosa brincadeira de metalinguagem: Numa
noite de estréia do Festival de Cannes, na França –e a metalinguagem não é, de
modo algum, algo inédito na obra de De Palma, vide “Um Tiro Na Noite” ou “Dublê
de Corpo”. Enquanto o diretor registra de forma convincente e autêntica os
bastidores de um festival tão importante aos cinéfilos, algo igualmente
excitante se dá às escondidas. Uma das funcionárias da segurança (vivida pela
sensual Rebbeca Romjin-Stamos, a Mística de “X-Men O Filme”) seduz uma modelo
que, por acaso, está usando um conjunto de jóias caríssimas –e as câmeras de De
Palma não têm pudor em flagrar com voyeurismo as minúcias desse interlúdio
sexual lésbico.
Logo, alguns personagens revelam sua intenção:
A de Rebbeca, no caso, é a de contribuir no roubo desse mesmo conjunto de jóias
–o quê se opera numa seqüência montada e executada com a maestria que se espera
do diretor.
De Palma leva seu filme a saltar de um gancho
narrativo a outro, menos incomodado em ser plausível, e mais em ser
imprevisível: Seguem-se então as inevitáveis desconfianças entre os cúmplices
do roubo milionário, e em seguida, as sintomáticas traições.
Em algum momento dessa salada de perseguições,
tramóias mirabolantes, assassinatos e identidades falsificadas –De Palma se sai
até com uma sósia da personagem de Rebbeca em determinado ponto! –surge o que
parece ser o protagonista de fato. E Antonio Banderas faz com bastante
propriedade e presença de cena, um fotógrafo paparazzi que entra numa grande
encrenca quando fotografa uma mulher ao acaso: Mais tarde, ele (assim como a
platéia) descobre que ela não somente é esposa de um embaixador (Peter Coyote), como também é
a personagem cheia de surpresas de Rebbeca Romjin-Stamos junto de quem
iniciamos o filme.
A tendência de qualquer expectador normal seria
a de procurar pela lógica nessa trama pontuada por reviravoltas absurdas –e
embora seja um tênue fio condutor existe alguma coerência a interligar tudo
–mas, esses detalhes não interessam ao diretor: Após uma longa carreira onde se
provou em diversos gêneros, estilos e temas, De Palma quer mesmo é colocar no
filme tudo que o excita e o fascina, sem ligar muito se a conexão narrativa
entre esses elementos parece desvairada. Durante grande parte de sua duração
–sobretudo, após a introdução do personagem de Banderas –“Femme Fatale” faz jus
ao seu título, tornando a personagem de Rebbeca tão efusivamente atraente e
sexy quanto conclusivamente encrenqueira e problemática: Ela leva ao extremo a
expressão na qual uma mulher transforma a vida de um cara num inferno!
Isso, contudo, só até os vinte minutos finais,
quando De Palma se sai com um dos plot twists mais insanos e inacreditáveis de
todos os tempos, ao alterar completamente as perspectivas de seu filme –e, no
processo, até mesmo promover o que parece ser uma mudança na índole de sua
protagonista.
Nas mãos de outro diretor,
isso tudo soaria exorbitante, precipitado, absurdo e incoerente, nas mãos de De
Palma, entretanto, é um testemunho de todas as ferramentas e os reflexos
involuntários de um gênero que ele domina como nenhum outro, e que em sua
habilidade incomum, ele consegue transformar num passatempo muito saboroso.
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