segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Bela Aldeia, Bela Chama

Um raríssimo exemplar do cinema sérvio, ao lado do belíssimo “Luna Papa”, a conseguir romper a resistência do circuito comercial a trabalhos de procedência incomum, esta notável e considerável realização chegou às telas de cinemas e às videolocadoras no final dos anos 1990 –algo bastante impressionante se parar para pensar na difícil acessibilidade daqueles tempos.
Talvez por isso sua linguagem e sua natureza cultural sejam tão distintas e contrastantes com as obras do período; quando muito, as produções oriundas daquele cinema que chegavam até aqui eram os elogiadíssimos filmes de Emir Kusturica. No entanto, o diretor Srdjan Dragojevic realizou um trabalho vigoroso e de invejável fôlego narrativo, demonstrando o quão inventivo e vívido é o cinema praticado em cantos do mundo que, por um bom tempo e mesmo ainda hoje, permanecem desconhecidos para a grande maioria dos expectadores.
A primeira cena de “Bela Aldeia, Bela Chama” mostra as precipitadas comemorações da inauguração das construções de um túnel (cenário que, mais a frente, ocupará o centro do drama), do corte no dedo pela tesoura quando é cortada a fita vermelha até o detalhe de que esta é uma construção –e não um monumento de fato –a narrativa do diretor Dragojevic enfatiza, nesse prólogo, o descaso e a distração com que as prioridades políticas e sociais são deixadas de lado em função da festividade.
No notável filme que se inicia a seguir, três linhas distintas de tempo se sucedem a preencher as lacunas da dramaturgia que o diretor constrói: Numa acompanhamos a amizade entre o sérvio Milan e o muçulmano Halil durante a juventude pontuada por farra, cerveja e galhofa; noutra, em 1992, os dois amigos já estão em lados opostos de um conflito que se concentra naquele mesmo túnel inacabado entre Belgrado e Zagreb, quando os muçulmanos conseguem acuar um grupo de sérvios dentro das precárias instalações e a passagem do tempo vai fazendo-os definhar física e psicologicamente; na terceira linha, os mesmos personagens (ao menos, os que sobreviveram) se encontram num hospital, em recuperação das severas seqüelas físicas desse episódio, inclusive Milan, enquanto tentam tolerar a presença de um enfermo prisioneiro de guerra muçulmano.

Dotado de admirável empuxo narrativo para com as conduções simultâneas de diferentes linhas de tempo –o quê demonstra uma subestimada competência da parte dos realizadores daquela região –este filme cheio de energia e senso de observação expõe os conflituosos flagelos íntimos que a guerra termina impondo ao homem comum.

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