segunda-feira, 16 de julho de 2018

Bonitinha, Mas Ordinária


“O mineiro só é solidário no câncer!”
A produção deste filme nacional dos anos 1980 tem tanta fé na inspiração contida nesta frase (atribuída a Otto Lara Resende) que ela é repetida exaustivamente –e além do que é tido por aceitável –ao longo de toda sua duração.
Baseado numa obra de Nelson Rodriguez, “Bonitinha, Mas Ordinária” se encaixa com perfeição na vertente maliciosa e libidinosa da pornochanchada de então que fazia a alegria do público nada politicamente correto com sua farta vulgaridade e promiscuidade.
É a essa e a outras demandas que o filme de Braz Chediak procura atender.
E, se pararmos para pensar sob esse prisma –o de uma realização que se dispõe a irmanar-se a outras tendências –há razões até para tolerar seus excessos, suas bizarrices e seu característico non-sense (elementos que ele tem de sobra).
O jovem Edgar (José Wilker) não passa de um ‘contínuo’ na firma em que trabalha –e, no filme, todos usam tal termo para assim se referir a ele, com veemente intenção de desprezo.
A oportunidade para ascender logo vem, não, contudo, desprovida de ônus: Edgar pode ganhar um cargo proeminente na empresa, desde que concorde em se casar com a filha do asqueroso Dr. Werneck (Carlos Kroeber, numa entrega perniciosa ao papel).
A moça em questão, Maria Cecília, é bela e desejável –e, interpretada por Lucélia Santos, é também um fulgor de carisma selvagem e apelo sexual –entretanto, é claro que há um porém; Maria Cecília foi currada por um bando de negões –numa seqüência tremendamente inacreditável onde o filme une a exploitation (não são poupados ângulos de câmeras reveladores e nem sadismo durante a cena), a permissividade do cinema brasileiro de então (no qual absurdos como fantasiar e fetichizar um estupro coletivo eram coisas corriqueiras) e uma referência à Akira Kurosawa (a cena em si é revista de diferentes formas várias vezes ao longo do filme)!
Depois do ocorrido (segundo consta, a mando de um chefe criminoso chamado “Cadelão”), a honra da moça só pode ser salva com um casamento arranjado, no qual o pobre Edgar entra de gaiato.
O dilema maior de Edgar se concentra no fato de que ele começa, então, a conquistar algum avanço em sua relação com a terna e deliciosa Ritinha (que, interpretada por Vera Fischer é, também ela, um furacão de sensualidade em cena, ainda que vivendo uma personagem acanhada), garota moradora do mesmo prédio que ele, cujo sustento das irmãs mais novas (entre elas uma jovem, muito jovem, Claudia Ohana) a levou à prostituição.
Se a obra de Nelson Rodriguez já era toda uma elaborada situação de circunstâncias exploratórias e sexuais, o filme de Braz Chediak, usando seu enredo por base ramifica e potencializa muito mais esse aspecto. A premissa em si –correspondendo ao contexto cinematográfico a que pertence –acaba sendo um pretexto para cenas constantes de nudez e sexo: O relato bem ‘rodrigueano’ de Ritinha sobre como iniciou sua desafortunada vida dupla (com seu primeiro abusador dizendo “Minha filha!” durante o ato!); o mendigo (cuja caracterização, irreal e absurda, parece mais a de um alienígena!) que flagra um amasso –com direito à nudez! –entre Ritinha e Edgar, e sai gritando: “Também quero, também sou filho de Deus!”; a cena de orgia na mansão do Dr. Werneck, em que os ricos amorais e inescrupulosos assistem, por sádica diversão, a dolorosa defloração de pobres garotas virgens (que vêem a ser as irmãs de Ritinha), numa alusão deliberada e completamente mambembe ao gesto provocador de Píer Paolo Pasolini em “Saló”; além da cena já citada do estupro coletivo e de muitas outras.
Embora feito com uma intenção pouco convicta para chocar, a transfiguração da obra de Nelson Rodriguez num autêntico produto da pornochanchada dificilmente chocaria seu próprio autor –ele certamente acharia graça do “Frankenstein” de bizarrices sem justificativas que sua obra se transformou.

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