sexta-feira, 14 de junho de 2024

A Última Tempestade


 Unir Peter Greenaway e William Shakespeare numa mesma obra é, em si, uma ideia curiosa e promissora; e “A Última Tempestade” prova, em sua originalidade e em sua vasta audácia audio-visual, que podem existir limites ainda não testados na linguagem cinematográfica. Concebido a partir da peça “A Tempestade”, de Shakespeare, o roteiro em cima do qual Greenaway dedica seu inconformismo técnico e artístico, conta a história de Próspero (o grande John Gielgud), o Duque de Milão, então deposto de seu título e banido para uma ilha remota na qual tem tão somente a companhia da filha Miranda (Isabelle Basco) e de sua vasta e rara biblioteca. Lá, Próspero começa a narrar –não sem uma forte intervenção pessoal e particular nos eventos como eles são recordados –os percalços que o levaram àquele lugar.

Lançado em 1991 –no auge do movimento conhecido como Novo Cinema Britânico, prolífico em obras desafiadoras como “Orlando-A Mulher Imortal” –“A Última Tempestade” não apenas é uma das obras mais radicais daquela vertente, como foi também a mais radical e pessoal até então perpetrada pelo diretor Peter Greenaway; isso numa filmografia que até então abarcava títulos como “Afogando Em Números” e “O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e OAmante”!

O que testemunhamos se concretizar na tela é algo por vezes desafiador a uma tentativa de categorização: Uma peça de teatro, desenvolvida, como tal, em um grande a abrangente palco, porém, convertida em um formato palpitante, pulsante e cinematográfico por desconcertantes recursos de video e de computação gráfica que distorcem e corrompem a imagem –a exemplo do próprio Próspero que, em sua vaidade ferida, distorce e corrompe a própria narrativa. Dentro dessa verdadeiro orgia visual, os atores dispostos em cena parecem se mover numa coreografia ensaiada e cronometrada, como numa dança onde todos obedecem o ritmo da música, contudo aqui, eles obedecem as vontades do protagonista/narrador: Em sua compreensão instintiva e certeira da obra do bardo, o diretor Greenaway entendeu o quão Shakespeare depositou muito de si mesmo em Próspero ao escrever “A Tempestade” –se Shakespeare é Próspero, então ele concebe a seu protagonista o poder que nenhum outro personagem tem: O de interferir, para o bem e para o mal, no destino de todos. É por isso que, em sua narração altamente erudita e literária, Próspero (cujo ator, John Gielgud, diga-se, faz a voz de todos os outros personagens também!) todos em cena se submetem aos seus planos e às suas vontades.

Indício poderoso dessa contundente transfiguração, é título original –“Próspero’s Books” –nos quais o autor reafirmar serem estas as impressões únicas e exclusivamente de seu personagem principal sobre tudo; e nessa onipotência metafísica assim concedida ao seu protagonista, Greenaway de moldar cenas assombrosas em seu desvario pictório, seu erotismo iconoclasta e sua transmutação plástica.

Uma mescla de pretensões indissociáveis entre a influência artística renascentista (uma obsessão de Greenaway) e a mais moderna tecnologia audio-visual da época, “A Última Tempestade” honra com propriedade estonteante a orientação primal do cinema de Peter Greenaway onde as imagens se transformam, se sobrepõem ou se completam diante do olhar atônito do público.

Desnecessário dizer que se trata de uma obra para públicos muito específicos –aqueles poucos predispostos a absorver uma experiência sensorial tão rica em detalhes e referências que certas cenas exigem atenção redobrada, acumulando mais detalhes, pistas e informações que um vislumbre meramente casual é capaz de exercer.

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