Unir Peter Greenaway e William Shakespeare numa mesma obra é, em si, uma ideia curiosa e promissora; e “A Última Tempestade” prova, em sua originalidade e em sua vasta audácia audio-visual, que podem existir limites ainda não testados na linguagem cinematográfica. Concebido a partir da peça “A Tempestade”, de Shakespeare, o roteiro em cima do qual Greenaway dedica seu inconformismo técnico e artístico, conta a história de Próspero (o grande John Gielgud), o Duque de Milão, então deposto de seu título e banido para uma ilha remota na qual tem tão somente a companhia da filha Miranda (Isabelle Basco) e de sua vasta e rara biblioteca. Lá, Próspero começa a narrar –não sem uma forte intervenção pessoal e particular nos eventos como eles são recordados –os percalços que o levaram àquele lugar.
Lançado em 1991 –no auge do movimento conhecido
como Novo Cinema Britânico, prolífico em obras desafiadoras como “Orlando-A Mulher Imortal” –“A Última Tempestade” não apenas é uma das obras mais radicais
daquela vertente, como foi também a mais radical e pessoal até então perpetrada
pelo diretor Peter Greenaway; isso numa filmografia que até então abarcava
títulos como “Afogando Em Números” e “O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e OAmante”!
O que testemunhamos se concretizar na tela é algo
por vezes desafiador a uma tentativa de categorização: Uma peça de teatro,
desenvolvida, como tal, em um grande a abrangente palco, porém, convertida em
um formato palpitante, pulsante e cinematográfico por desconcertantes recursos
de video e de computação gráfica que distorcem e corrompem a imagem –a exemplo
do próprio Próspero que, em sua vaidade ferida, distorce e corrompe a própria
narrativa. Dentro dessa verdadeiro orgia visual, os atores dispostos em cena
parecem se mover numa coreografia ensaiada e cronometrada, como numa dança onde
todos obedecem o ritmo da música, contudo aqui, eles obedecem as vontades do
protagonista/narrador: Em sua compreensão instintiva e certeira da obra do
bardo, o diretor Greenaway entendeu o quão Shakespeare depositou muito de si
mesmo em Próspero ao escrever “A Tempestade” –se Shakespeare é Próspero, então
ele concebe a seu protagonista o poder que nenhum outro personagem tem: O de
interferir, para o bem e para o mal, no destino de todos. É por isso que, em
sua narração altamente erudita e literária, Próspero (cujo ator, John Gielgud,
diga-se, faz a voz de todos os outros personagens também!) todos em cena se
submetem aos seus planos e às suas vontades.
Indício poderoso dessa contundente
transfiguração, é título original –“Próspero’s Books” –nos quais o autor
reafirmar serem estas as impressões únicas e exclusivamente de seu personagem
principal sobre tudo; e nessa onipotência metafísica assim concedida ao seu
protagonista, Greenaway de moldar cenas assombrosas em seu desvario pictório,
seu erotismo iconoclasta e sua transmutação plástica.
Uma mescla de pretensões indissociáveis entre a
influência artística renascentista (uma obsessão de Greenaway) e a mais moderna
tecnologia audio-visual da época, “A Última Tempestade” honra com propriedade
estonteante a orientação primal do cinema de Peter Greenaway onde as imagens se
transformam, se sobrepõem ou se completam diante do olhar atônito do público.
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