sábado, 21 de março de 2020

O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e O Amante

Um dos mais representativos nomes do novo cinema britânico que aflorou com som e fúria em meados dos anos 1980, espelhando uma certa rebeldia do movimento musical punk-rock, o diretor Peter Greenaway, numa esteira de produções cheias de vigor, originalidade e transgressão que entregou naquela década, realizou este “O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e O Amante” como uma metáfora desconcertante sobre o consumismo e a agressividade irrestrita que dominava a mentalidade executiva de profissionais ingleses e americanos daquele período, os chamados yuppies.
Logo, uma crítica velada ao conservadorismo político da Inglaterra de Margaret Thatcher.
Por essa postura, e pelo mergulho sem ressalvas nas neuroses que dominaram praticamente toda a obra de Greenaway –sexo, comida, violência e morte –o filme recebeu uma altíssima classificação indicativa nos EUA quando de seu lançamento nos cinemas em 1989.
Ele parte de uma situação irrisória, em princípio banal, que gradativamente ganha ares de absurdo e pesadelo a medida que o diretor, também roteirista, ajusta as circunstâncias aos anseios e predisposições mais pessoais de seus personagens.
Entre eles, destaca-se o casal Spica, Albert (Michael Gambon) e Georgina (Helen Mirren, maravilhosa). Albert é um mafioso e, junto de Georgina e de seus capachos de praxe, janta todas as noites no Restaurante Le Hollandais, local de trabalho do chefe de cozinha Richard (Richard Bohringer, de “Subway”), que supre sua gula com uma infinidade de pratos.
Obedecendo a alguns expedientes da ficção, Greenaway leva Georgina a um inevitável tédio diante da grosseria ocasional e da verborragia eventual de Albert, e com isso, ela acaba caindo nos braços de Michael (Alan Howard, ator que deu voz ao Um Anel em “O Senhor dos Anéis”), um solitário frequentador do lugar.
Uma nova dinâmica se instala: Inerte em sua glutonaria, Albert não desconfia de que, noite após noite, sua esposa faz sexo com o amante nos mais diversos locais do restaurante –no banheiro, na despensa... –tudo com a cumplicidade do chefe Richard (desnecessário dizer que Helen Mirren está absolutamente sensacional, tirando de letra as cenas audaciosas de nudez!).
Assim, os excessos da modernidade humana são enfatizados nessa narrativa cheia de personalidade por meio do uso da cor: Por exemplo, o branco presente no banheiro, ou o vermelho que predomina no salão (dentro do qual Greenaway recria o quadro “Banquete dos Oficiais da Companhia da Guarda de São Jorge”, do pintor holandês Frans Hals). Todos esses elementos lúdicos e eruditos evidenciam a luxúria desesperada e carente, a voracidade consumista e, por vezes, a predisposição para a auto-destruição a que todos esses tópicos podem conduzir.
É claro que em algum momento, Albert descobrirá a traição de Georgina, apesar da fastidiosa distração enquanto promove banquetes exorbitantes e humilha seus capangas, e é claro que, sendo Albert o personagem que é (um retrato de todos os vícios monstruosos e detestáveis a que está sujeito o homem moderno), sua retaliação será cruel.
Será, porém, a vingança subsequente da própria Georgina que irá completar o quadro de absoluta escatologia perpetrado por Greenaway nesta fábula implacável, requintada e ao mesmo tempo grotesca de canibalismo.
Apesar de todos esses excessos, essa justaposição do diretor funciona na medida em que sua câmera passeia de um ambiente para outro, emulando o confinamento de uma peça de teatro na qual procura por algum indício de bondade em meio à tanta depravação.

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