Adaptado do denso e cerebral livro de Virginia
Woolf, o filme realizado por Sally Potter beneficia-se, antes de mais nada, da
presença mais do que perfeita da atriz Tilda Swinton, cuja androginia consegue
dar conta plenamente das complexidades de interpretar um personagem definido em
sua trajetória por sua conversão de homem em mulher (!).
Um jovem menino –e guardando algumas
características femininas como ele mesmo afirma ser traços de sofisticação na
breve narração que abre o filme –o protagonista surge no ano de 1600, como
herdeiro de um nobre inglês.
Assim, Orlando cai nas graças da toda poderosa
rainha Elizabeth –vivida, por sua vez, por um ator, Quentin Crisp, o quê
acentua a androginia que esta personagem compartilha com o protagonista e, quem
sabe, explique os pormenores bizarros de sua saga vindoura.
Elizabeth aparenta reconhecer em Orlando um
semelhante, e lhe concede um dote substancial sob uma condição quase abstrata:
De que nunca morra, nunca envelheça.
A partir daí, e da morte repentina da rainha
Elizabeth e do pai de Orlando, ele atravessa várias décadas e várias
experiências, revelando uma insuspeita (e aparentemente despercebida)
imortalidade.
Dez anos depois (1610), ele descobre o amor (e
a desilusão) pelas mulheres ao apaixonar-se por uma jovem dissidente russa que
o abandona.
Já em 1650, ele procura alimentar sua verve
poética ao bancar o hedonismo de um poeta cujas consultorias literárias não
fazem mais do que insultar seus esforços.
As décadas transcorrem como uma brisa na
narrativa da diretora Potter que parece mais optar por capturar seu
protagonista em distintas situações esboçadas ao longo dos anos do que
propriamente posicioná-lo ao centro de uma trama mais delineada –como quando
tem um amistoso encontro um príncipe do Oriente (Lothaire Bluteau, de “Hábito Negro”) e tem uma oportunidade de avaliar as extensões de seu desencanto com as
mulheres.
Em algum momento de seu percurso através da
vida, ocorre a transformação, e Orlando vira assim uma mulher –momento no qual
Tilda Swinton aproveita para agregar à sua atuação uma beleza e uma
feminilidade que chegam a espantar o expectador.
Entretanto, se antes Orlando contemplava, do
ponto de vista de um rapaz, uma melancólica e incongruente incomunicabilidade
com as mulheres, agora que converteu-se em uma, dá-se conta dos desabonos
sociais, comportamentais e existenciais sofridos por elas –todos esses
aspectos, porém, visitados com relativa superficialidade pelo filme que
enfatiza muito mais as alegorias de ordem visual do que as inquietações
porventura presentes em sua história.
Assim, já em meados de 1700, vemos Orlando
descobrir o que ele (ou melhor, ela!) supunha ser o amor, no encontro casual,
porém, ardente e afetuoso com Shelmerdine (Billy Zane, de “Titanic”).
Orlando almeja ter um filho dele –entre outras
coisas porque, na qualidade de mulher, ela precisava gerar um herdeiro do sexo
masculino para o espólio de seu pai e continuar com as posses da família
–contudo, embora ela apareça grávida na cena seguinte, não fica claro se é
realmente de Shelmerdine que ela engravidou: Isso porque a protagonista já está
nos séculos subsequentes, a vivenciar os transtornos da guerra.
A condução de Sally Potter se revela apressada,
ávida por buscar um ritmo enxuto, talvez na intenção de recriar as impressões
da imortalidade da personagem principal, cuja leveza longeva ante as
modificações do mundo levam-na a pairar sobre esses acontecimentos. De qualquer
forma, essa escolha não permite que o público tenha tempo o bastante para capturar
as informações necessárias, e nem impede o filme de contrair certa lentidão em
seu ritmo.
É numa atmosfera de pouca elucidação, portanto,
que chegamos com a protagonista até o Século XX, onde a vemos gozar do
prestígio de ser escritora e de ser mãe; de uma garotinha, por sinal
(interpretada por Jessica Swinton, sobrinha de Tilda na vida real). De quem
Orlando engravidou (pois, pelo intervalo de tempo, ela não pode ser filha de
Shelmerdine)? O que fez ao longo de todo esse tempo? Como manteve a herança de sua
família? Ou SE manteve? São questões que a narrativa parece manter
orgulhosamente em aberto.
Lançado em 1992, “Orlando” é um trabalho
profundamente integrado à uma vervente cinematográfica britânica muito peculiar
desse período que tinha como maiores expoentes os diretores Peter Greenaway e
Derek Jarman: É, pois, uma obra menos dedicada à fidelidade a Virginia Woolf
(embora guardados os radicalismos de suas mudanças, ele se mantenha, em sua
essência, fiel) e mais ao estilo que o define, com seu rigoroso acabamento
visual servindo de moldura a uma realização de propósitos anacrônicos em seu
metafórico desconforto e a uma depreciativa, bombasticamente irônica e
desconcertante alegoria da existência humana.
São tais escolhas, rumo a
um cinema muito característico, que levam à cena final, um registro certamente
distinto do livro, onde uma câmera registra despojadamente um anjo, numa
caracterização algo transgressiva e desafiadora, a cantar, em ritmo modernoso,
o fascínio transcendental da androginia que ele próprio compartilha com a
protagonista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário