quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A Idade da Terra


Glauber Rocha fez experimentalismos cinematográficos numa época em que os filmes não sofriam o processo de migrar para outras mídias: Não existia o DVD, sequer o Blu-Ray, e muito menos o hoje jurássico VHS.
É necessário saber disso para se compreender a proposta por trás de “A Idade da Terra”. Glauber Rocha procurou levar ao ápice sua capacidade de distorcer o convencionalismo incrustrado no ato de reger um filme –e até mesmo de assistí-lo.
No cinema, um longa-metragem de duas horas de duração em geral consiste de dezesseis rolos que são projetados numa ordem específica para a plateia numa sala de cinema. Ao realizar “A Idade da Terra” (inspirado, segundo consta, num poema de Castro Alves), Glauber Rocha vislumbrou a mais abstrata experiência cinematográfica baseada na estrutura básica desse procedimento.
O quê ele fez?
Ele rodou dezesseis rolos de filmagens completamente independentes e aleatórios, deixando que a ordem em que fossem exibidos ficasse à critério do próprio projecionista da ocasião. Conforme são apresentados, esses, digamos, episódios podem se relacionar, se complementar ou simplesmente se suceder sem muita explicação –ou com um sentido nebuloso –tudo depende de sua ordem.
O DVD de “A Idade da Terra” –cuja reprodução, lógico, não obedece a mecânica de uma sala de cinema –tem uma assim chamada “Montagem Sugerida” embora, claro, os dezesseis capítulos possam ser assistidos em qualquer ordem.
Por isso mesmo, não só é difícil afirmar qual é exatamente o tema proposto por essa reflexão como também existem intermináveis associações e interpretações que podem serem feitas.
Alguns deles são silenciosas composições de estilo onde Glauber exercita sua habilidade técnica; outros, são improvisos tão soltos e livres que quase esbarram na anarquia ou na escatalogia; acompanhamos um monólogo quase aleatório sobre o golpe de 1968; vemos o ator Antonio Pitanga personificar um Cristo de inclinações muitos particulares em uma alucinada disertação sobre a liberdade e a libertinagem enquanto se acha nu em uma campina ao lado de outra moça; num dos momentos mais constrangedores, um trio formado por Norma Bengell, Jece Valadão e Maurício do Valle delira sobre arte, teatro, embriagez e mitologia numa cama à beira do que parece ser um menage à trois enquanto ocasionalmente alguém da própria equipe técnica (Glauber, talvez) lhes chama a atenção para repetir a fala para que seja captada pela aparelhagem de som; Tarcisio Meira aparece como um personagem ostensivamente messiânico (outra variação de Cristo, possivelmente) em meio aos carros alegóricos de uma escola de samba; e tantas outras sequências de natureza artística, cultural, política, religiosa e afim.
Último filme de Glauber Rocha e, portanto, realizado em uma época em que ele, a exemplo de Godard, já começava a acreditar em um certo mito surgido em torno de si mesmo, “A Idade da Terra” está longe de ser uma obra acessível ou para qualquer tipo de público. É um trabalho desafiador e inconstante, fruto de uma mente que procurava, antes de mais nada, meios cada mais inesperados de transgredir em sua arte –e como tal deve ser encarado.

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