Glauber Rocha fez experimentalismos
cinematográficos numa época em que os filmes não sofriam o processo de migrar
para outras mídias: Não existia o DVD, sequer o Blu-Ray, e muito menos o hoje
jurássico VHS.
É necessário saber disso para se compreender a
proposta por trás de “A Idade da Terra”. Glauber Rocha procurou levar ao ápice
sua capacidade de distorcer o convencionalismo incrustrado no ato de reger um
filme –e até mesmo de assistí-lo.
No cinema, um longa-metragem de duas horas de
duração em geral consiste de dezesseis rolos que são projetados numa ordem
específica para a plateia numa sala de cinema. Ao realizar “A Idade da Terra”
(inspirado, segundo consta, num poema de Castro Alves), Glauber Rocha
vislumbrou a mais abstrata experiência cinematográfica baseada na estrutura
básica desse procedimento.
O quê ele fez?
Ele rodou dezesseis rolos de filmagens
completamente independentes e aleatórios, deixando que a ordem em que fossem
exibidos ficasse à critério do próprio projecionista da ocasião. Conforme são
apresentados, esses, digamos, episódios podem se relacionar, se complementar ou
simplesmente se suceder sem muita explicação –ou com um sentido nebuloso –tudo
depende de sua ordem.
O DVD de “A Idade da Terra” –cuja reprodução,
lógico, não obedece a mecânica de uma sala de cinema –tem uma assim chamada
“Montagem Sugerida” embora, claro, os dezesseis capítulos possam ser assistidos
em qualquer ordem.
Por isso mesmo, não só é difícil afirmar qual é
exatamente o tema proposto por essa reflexão como também existem intermináveis
associações e interpretações que podem serem feitas.
Alguns deles são silenciosas composições de
estilo onde Glauber exercita sua habilidade técnica; outros, são improvisos tão
soltos e livres que quase esbarram na anarquia ou na escatalogia; acompanhamos
um monólogo quase aleatório sobre o golpe de 1968; vemos o ator Antonio Pitanga
personificar um Cristo de inclinações muitos particulares em uma alucinada
disertação sobre a liberdade e a libertinagem enquanto se acha nu em uma
campina ao lado de outra moça; num dos momentos mais constrangedores, um trio
formado por Norma Bengell, Jece Valadão e Maurício do Valle delira sobre arte, teatro,
embriagez e mitologia numa cama à beira do que parece ser um menage à trois
enquanto ocasionalmente alguém da própria equipe técnica (Glauber, talvez) lhes
chama a atenção para repetir a fala para que seja captada pela aparelhagem de
som; Tarcisio Meira aparece como um personagem ostensivamente messiânico (outra
variação de Cristo, possivelmente) em meio aos carros alegóricos de uma escola
de samba; e tantas outras sequências de natureza artística, cultural, política,
religiosa e afim.
Último filme de Glauber Rocha e, portanto,
realizado em uma época em que ele, a exemplo de Godard, já começava a acreditar
em um certo mito surgido em torno de si mesmo, “A Idade da Terra” está longe de
ser uma obra acessível ou para qualquer tipo de público. É um trabalho
desafiador e inconstante, fruto de uma mente que procurava, antes de mais nada,
meios cada mais inesperados de transgredir em sua arte –e como tal deve ser
encarado.
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