terça-feira, 14 de agosto de 2018

O Inocente


Ao adaptar o romance de Gabriele D’Annunzio, o diretor italiano Luchino Visconti vislumbrou um conto moral tão mais poderoso pelo sensação de impotência e de indignação diante dos fatos com a qual consegue intoxicar o expectador.
“O Inocente”, do título, supostamente se refere ao personagem de Giancarlo Giannini, o aristocrata Tullio, entretanto, assim com em “O Idiota”, de Fiodor Dostoievisky, esse título não lhe é de todo apropriado. No princípio, diante do comportamento de Tulio, que goza das permissões de frivolidade de sua classe social na Itália do século XIX, ele parece menos um inocente e mais um tolo: Deixa completamente de lado o amor e a consideração da esposa Giuliana (Laura Antonelli, belíssima) para lançar-se abertamente em uma aventura inconsequente com a liberal Condessa Raffo (a americana Jennifer O’ Neil, com uma bizonha dublagem italiana).
Sua atitude é tão mais ultrajante diante não só da passividade de Giuliana como também dos discursos argumentativos para justificar sua canalhice.
Mas, tudo ficará ainda pior.
Após o abandono de Tulio, Giuliana busca seguir em frente na medida do possível para uma mulher presa à todas as conveniências machistas de sua sociedade de então. Ela conhece o jovem escritor Fillipo D’Arborio (Marc Porel, o padre de “O Segredo do Bosque dos Sonhos”) e com ele inicia um flerte tímido aos olhos do expectador –e o diretor Visconti, em sua poderosa elegância molda uma narrativa onde  nunca fica claro se, de fato, a relação entre Giuliana e D’Arborio consumou-se.
Todavia, os indícios desse flerte chegam até Tulio, então embriagado com a relação que mantém aberta com a Condessa Raffo; cuja postura de indomável precursora do feminismo impede que Tulio tenha sobre ela a mesma exclusividade que tinha com Giuliana –e disso ele se ressente.
É então que o filme nos revela uma outra faceta de Tulio: Ao perceber que Giuliana encontrou caminhos para a felicidade e o prazer à revelia dele, Tulio volta para sua casa e passa a assediá-la como uma sombra, exigindo tardiamente seus direitos de marido. E o comportamento afável de Giuliana, na interpretação bem calibrada de Laura Antonelli –bem com sua esplêndida nudez à disposição de sua prepotente vontade –só potencializa o personagem de Giannini como um detestável antagonista.
Ele coage Giuliana a reatar o casamento que ele mesmo havia dado por encerrado, mas logo tem uma amarga surpresa: Giuliana está grávida, sem dúvidas, do amante que manteve na ausência de Tulio, mas, quem é esse amante?
Tudo leva a crer que é D’Arborio, mas nem Giuliana, nem a própria condução de Visconti ratificam essa certeza, preferindo a manutenção de uma aura de suspense e mistério a intrigar Tulio e o expectador.
Mesmo expressando suas ressalvas, Tulio permite que Giuliana leve sua gravidez adiante, mas a falta de escrúpulos desse personagem, aliada à natureza estóica da personagem de Laura Antonelli levarão a uma tragédia desconcertante deflagrada no trecho final –e ainda mais revoltante pelo filme negar ao vilão, até certo ponto pelo menos, seu devido julgamento moral; pensando bem, nesse sentido, talvez, “O Inocente” do título seja afinal a criança à qual Giuliana deu à luz e que fez o possível para proteger.
Visconti observa assim os princípios éticos primitivos do ser humano; ‘Tudo me é lícito. Nem tudo me convém.’ Desprovido de um freio moral existencial (não são raras as vezes em que Tulio declama seu ateísmo e sua indiferença às condutas religiosas) e beneficiado pela impunidade dos burgueses privilegiados, Tulio é, portanto, um mau-caráter de desdobramentos implacáveis.
Ao fim, na conduta quase santificada de Giuliana, Visconti encontra uma forma de infligir ao seu hediondo personagem principal um mínimo de castigo. Ainda que pareça insuficiente depois de tamanho mal que ele perpetrou.

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