Ao adaptar o romance de Gabriele D’Annunzio, o
diretor italiano Luchino Visconti vislumbrou um conto moral tão mais poderoso
pelo sensação de impotência e de indignação diante dos fatos com a qual
consegue intoxicar o expectador.
“O Inocente”, do título, supostamente se refere
ao personagem de Giancarlo Giannini, o aristocrata Tullio, entretanto, assim
com em “O Idiota”, de Fiodor Dostoievisky, esse título não lhe é de todo
apropriado. No princípio, diante do comportamento de Tulio, que goza das
permissões de frivolidade de sua classe social na Itália do século XIX, ele
parece menos um inocente e mais um tolo: Deixa completamente de lado o amor e a
consideração da esposa Giuliana (Laura Antonelli, belíssima) para lançar-se
abertamente em uma aventura inconsequente com a liberal Condessa Raffo (a
americana Jennifer O’ Neil, com uma bizonha dublagem italiana).
Sua atitude é tão mais ultrajante diante não só
da passividade de Giuliana como também dos discursos argumentativos para
justificar sua canalhice.
Mas, tudo ficará ainda pior.
Após o abandono de Tulio, Giuliana busca seguir
em frente na medida do possível para uma mulher presa à todas as conveniências
machistas de sua sociedade de então. Ela conhece o jovem escritor Fillipo D’Arborio
(Marc Porel, o padre de “O Segredo do Bosque dos Sonhos”) e com ele inicia um
flerte tímido aos olhos do expectador –e o diretor Visconti, em sua poderosa
elegância molda uma narrativa onde nunca
fica claro se, de fato, a relação entre Giuliana e D’Arborio consumou-se.
Todavia, os indícios desse flerte chegam até
Tulio, então embriagado com a relação que mantém aberta com a Condessa Raffo;
cuja postura de indomável precursora do feminismo impede que Tulio tenha sobre
ela a mesma exclusividade que tinha com Giuliana –e disso ele se ressente.
É então que o filme nos revela uma outra faceta
de Tulio: Ao perceber que Giuliana encontrou caminhos para a felicidade e o
prazer à revelia dele, Tulio volta para sua casa e passa a assediá-la como uma
sombra, exigindo tardiamente seus direitos de marido. E o comportamento afável
de Giuliana, na interpretação bem calibrada de Laura Antonelli –bem com sua
esplêndida nudez à disposição de sua prepotente vontade –só potencializa o
personagem de Giannini como um detestável antagonista.
Ele coage Giuliana a reatar o casamento que ele
mesmo havia dado por encerrado, mas logo tem uma amarga surpresa: Giuliana está
grávida, sem dúvidas, do amante que manteve na ausência de Tulio, mas, quem é
esse amante?
Tudo leva a crer que é D’Arborio, mas nem
Giuliana, nem a própria condução de Visconti ratificam essa certeza, preferindo
a manutenção de uma aura de suspense e mistério a intrigar Tulio e o
expectador.
Mesmo expressando suas ressalvas, Tulio permite
que Giuliana leve sua gravidez adiante, mas a falta de escrúpulos desse
personagem, aliada à natureza estóica da personagem de Laura Antonelli levarão
a uma tragédia desconcertante deflagrada no trecho final –e ainda mais
revoltante pelo filme negar ao vilão, até certo ponto pelo menos, seu devido
julgamento moral; pensando bem, nesse sentido, talvez, “O Inocente” do título
seja afinal a criança à qual Giuliana deu à luz e que fez o possível para
proteger.
Visconti observa assim os princípios éticos
primitivos do ser humano; ‘Tudo me é lícito. Nem tudo me convém.’ Desprovido de
um freio moral existencial (não são raras as vezes em que Tulio declama seu ateísmo
e sua indiferença às condutas religiosas) e beneficiado pela impunidade dos burgueses
privilegiados, Tulio é, portanto, um mau-caráter de desdobramentos implacáveis.
Ao fim, na conduta quase santificada de
Giuliana, Visconti encontra uma forma de infligir ao seu hediondo personagem
principal um mínimo de castigo. Ainda que pareça insuficiente depois de tamanho
mal que ele perpetrou.
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