segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Trama Fantasma


O diretor Paul Thomas Anderson e o astro Daniel Day-Lewis contavam que tinham em mente uma trama que explorava os tormentos românticos nascidos de uma relação de simbiose artística no mundo da confecção vestuária, porém, esbarraram em um problema: Ambos não sabiam coisa alguma do ofício ou de moda.
É um comentário simpático que mascara o teor corrosivo do trabalho que fizeram.
Thomas Anderson é um diretor que, nos moldes de Stanley Kubrick, realiza filmes para desestabilizar, às vezes sufocar, ou até desconcertar o expectador.
O protagonista de “Trama Fantasma” –que Daniel Day-Lewis constrói de modo tão preciso e impecável quanto em “Sangue Negro” –é Reynolds Woodcock, um estilista de moda renomado, requisitado pelos membros mais altos da aristocracia e da realeza.
Para atingir um grau tão elevado de excelência e inspiração, Reynolds construiu com afinco um sistema de regras e comportamentos em torno de si que jamais tolera interrupções ou tentativas de mudança, cujas origens podem se encontrar na fixação soturna bela figura de sua mãe já falecida.
Agente poderosa da manutenção desse sistema, a Sra. Cyril (Leslie Manville, magistral) é uma espécie de braço-direito que a segue feito uma entidade; é o anjo que enaltece seus valores, o demônio que incentiva seus caprichos.
Contudo, é inevitável –em um âmbito predominantemente artístico –a presença de elemento tão humano quanto instável: E Reynolds depende de uma modelo para incorporar suas criações.
No início, a narrativa de Thomas Anderson registra o fim de uma relação nestes moldes. Reynolds e sua modelo vivem um silêncio desconfortável que ela já não suporta.
Ele conhece então, num café campestre, uma jovem que reacende seus instintos criativos, a garçonete Alma (Vicky Krieps). Um diamante bruto no sentido de que tem genuinamente todas as qualidades que Reynolds procura, Alma se apaixona por ele e, de imediato, estabelece o tipo de relação que Reynolds mantém com todos: Ela cede tudo aquilo que ele quer (sua disponibilidade, seu amor e sua reverência) em troca da vaidade de ser sua musa, de respirar o ar que ele respira e de absorver sua essência.
Desde o princípio, de forma hipnótica, Thomas Anderson mostra que o mundo de Reynolds gira em torno dele. Daí é natural que Alma, ao almejar um relacionamento normal com suas trocas e vicissitudes, acabe se ressentindo com Reynolds.
Como o grande diretor que é, Thomas Anderson vai muito além do que o expectador pode supor nessa sua observação dos indícios irracionais de uma dependência mútua.
Reynolds precisa de Alma porque ela personifica seu ímpeto de criar. Alma precisa de Reynolds porque ele fez com que ela o amasse.
E Alma compreende que, nessa circunstância, a dependência de Reynolds por ela pode ser momentânea e, amargurada pela possibilidade de afastamento, arquiteta um meio de fazê-lo perceber que sua necessidade dela vai além da importância artística –e tal meio não inclui escrúpulos.
Ao moldar uma relação obsessiva, materializada num mundo à parte (e, para tanto, são fundamentais as decisões de não especificar nem a época nem o lugar em que tudo se passa), Thomas Anderson levanta pouco a pouco uma névoa de incredulidade e até de absurdo em torno dos paradigmas com os quais Reynolds e Alma trabalham seu relacionamento, e com eles intriga e instiga o público: Até que ponto Reynolds compreende a ameaça que Alma oferece a ele? Até que ponto –ou até quando –ele de fato a ama até mantê-la em seu mundo sistemático como uma mera presença?
A julgar pelo desfecho ainda assim enigmático, a relação de amor e ódio que eles construíram ao longo do filme adquiriu uma simbiose que flerta com a morte. Um comentário curioso e significativo de Thomas Anderson e Day-Lewis sobre talento, legado e mortalidade, reforçado pelo fato pertinente de ser este o último filme de Day-Lewis antes de sua anunciada aposentadoria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário