quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Julieta dos Espíritos


Na exultação da cor que Fellini promove ao abraçar com sua exuberância de sempre a primeira obra colorida de sua carreira, o diretor italiano faz de “Julieta dos Espíritos” uma inusitada aproximação com os fantasmas da mente e da identidade que, de certa maneira, enchiam de cor a filmografia do mestre sueco Ingmar Bergman –ainda que à princípio, suas obras pareçam impossíveis de serem relacionadas.
Como em “Persona” (que Bergman lançaria um ano depois), este trabalho de Fellini se debruça sobre o fato alucinante de traumas do passado que interferem no comportamento presente.
“Persona” e “Julieta dos Espíritos” estabelecem um diálogo curioso, uma justaposição de ideias de dois grandes contadores cinematográficos de histórias que convergiram, nestes dois filmes, em temáticas e resultados que reflexivamente os fez equivalentes: Na vasta possibilidade de seus trechos enigmáticos, o próprio “Persona” acaba sendo, sob esse prisma, uma evocação de Fellini por Bergman; o turbilhão visual de seu prólogo não me deixa mentir.
Mas, voltemos à trama deste filme: Julieta (vivida pela própria Giuletta Masina, esposa de Fellini, para quem ele escreveu este papel) é uma dona de casa burguesa que vive uma rotina hedonista. Sua vida parece, em alguns momentos, ser um constante preparativo para uma festa a ser celebrada dentro em breve –a festa em questão, quando o filme se inicia, vem a ser seu aniversário de casamento.
No entanto, no sempre inesperado olhar para o interior perplexo de seus protagonistas, Fellini deixa transparecer aos poucos que, por trás da fachada de descontração, Julieta é uma mulher infeliz.
Diante da possibilidade de seu marido ser adúltero, Julieta não sabe como reagir.
Sua amiga, a tresloucada Suzy (a magnífica Sandra Milo que se desdobra em outras duas personagens) lhe aconselha a abandonar a passividade, e mostra-se, com isso, uma voz constante para mudanças comportamentais que a sociedade de fato estava abraçando naqueles anos 1960 de então.
Contudo, a trilha rumo à mudança, para Julieta, se revela interna: Um guru psíquico (Friedrich von Ledebur) fornece à Julieta um tour por áreas remotas de sua mente, e com isso, as recordações invadem a monotonia da realidade (como a repressão imposta por sua mãe quando criança, um elemento que se mostra constante em suas lembranças), e suas visões –seus espíritos, portanto –entrincheiram-se em circunstâncias que não permitem à sua protagonista uma distinção exata do que está vendo, ouvindo e sentindo.
Psicodélico, deliberadamente confuso, e aberto a um sem-fim de interpretações, “Julieta dos Espíritos” foi realizado logo após o êxito maciço de “8 ½” –e em meio à revolução sexual que gerou um abalo sísmico na percepção artística europeia –nesse sentido, ele não conquistou na época o mesmo sucesso, levando o trabalho de Fellini a ser criticado por uma sintomática repetição dos temas de sua consagrada obra anterior. De fato, como o Guido de “8 ½”, são muitas as alucinações a comparecer para perturbar a sanidade de sua protagonista e assim arremessa-la numa narrativa de ordem alegórica: Sua mãe rígida e insensível (Caterina Boratto); suas irmãs frívolas e egoístas; Laura, a amiga suicida; as freiras da escola que estudou na infância.
Se existe algo que distingue este trabalho é, portanto, a substituição de um alter-ego por uma personagem principal feminina (que confere ao filme um contundente viés feminista) e, sobretudo, o fato de ser o primeiro filme colorido de Fellini, e por conta disso, ele evoca na direção de arte, no figurino e na fotografia um universo mergulhado em cores alucinantes justapostas ao branco translúcido que ladeia a normalidade. Seu universo onírico rico em desvairadas ponderações da mente nunca antes foi tão vívido e tão intenso justamente por isso.

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