Na exultação da cor que Fellini promove ao
abraçar com sua exuberância de sempre a primeira obra colorida de sua carreira,
o diretor italiano faz de “Julieta dos Espíritos” uma inusitada aproximação com
os fantasmas da mente e da identidade que, de certa maneira, enchiam de cor a
filmografia do mestre sueco Ingmar Bergman –ainda que à princípio, suas obras
pareçam impossíveis de serem relacionadas.
Como em “Persona” (que Bergman lançaria um ano
depois), este trabalho de Fellini se debruça sobre o fato alucinante de traumas
do passado que interferem no comportamento presente.
“Persona” e “Julieta dos Espíritos” estabelecem
um diálogo curioso, uma justaposição de ideias de dois grandes contadores
cinematográficos de histórias que convergiram, nestes dois filmes, em temáticas
e resultados que reflexivamente os fez equivalentes: Na vasta possibilidade de
seus trechos enigmáticos, o próprio “Persona” acaba sendo, sob esse prisma, uma
evocação de Fellini por Bergman; o turbilhão visual de seu prólogo não me deixa
mentir.
Mas, voltemos à trama deste filme: Julieta
(vivida pela própria Giuletta Masina, esposa de Fellini, para quem ele escreveu
este papel) é uma dona de casa burguesa que vive uma rotina hedonista. Sua vida
parece, em alguns momentos, ser um constante preparativo para uma festa a ser
celebrada dentro em breve –a festa em questão, quando o filme se inicia, vem a
ser seu aniversário de casamento.
No entanto, no sempre inesperado olhar para o
interior perplexo de seus protagonistas, Fellini deixa transparecer aos poucos
que, por trás da fachada de descontração, Julieta é uma mulher infeliz.
Diante da possibilidade de seu marido ser
adúltero, Julieta não sabe como reagir.
Sua amiga, a tresloucada Suzy (a magnífica Sandra
Milo que se desdobra em outras duas personagens) lhe aconselha a abandonar a
passividade, e mostra-se, com isso, uma voz constante para mudanças
comportamentais que a sociedade de fato estava abraçando naqueles anos 1960 de
então.
Contudo, a trilha rumo à mudança, para Julieta,
se revela interna: Um guru psíquico (Friedrich von Ledebur) fornece à Julieta
um tour por áreas remotas de sua mente, e com isso, as recordações invadem a
monotonia da realidade (como a repressão imposta por sua mãe quando criança, um
elemento que se mostra constante em suas lembranças), e suas visões –seus
espíritos, portanto –entrincheiram-se em circunstâncias que não permitem à sua
protagonista uma distinção exata do que está vendo, ouvindo e sentindo.
Psicodélico, deliberadamente confuso, e aberto
a um sem-fim de interpretações, “Julieta dos Espíritos” foi realizado logo após
o êxito maciço de “8 ½” –e em meio à revolução sexual que gerou um abalo
sísmico na percepção artística europeia –nesse sentido, ele não conquistou na
época o mesmo sucesso, levando o trabalho de Fellini a ser criticado por uma
sintomática repetição dos temas de sua consagrada obra anterior. De fato, como
o Guido de “8 ½”, são muitas as alucinações a comparecer para perturbar a
sanidade de sua protagonista e assim arremessa-la numa narrativa de ordem
alegórica: Sua mãe rígida e insensível (Caterina Boratto); suas irmãs frívolas
e egoístas; Laura, a amiga suicida; as freiras da escola que estudou na
infância.
Se existe algo que distingue este trabalho é,
portanto, a substituição de um alter-ego por uma personagem principal feminina
(que confere ao filme um contundente viés feminista) e, sobretudo, o fato de
ser o primeiro filme colorido de Fellini, e por conta disso, ele evoca na direção
de arte, no figurino e na fotografia um universo mergulhado em cores
alucinantes justapostas ao branco translúcido que ladeia a normalidade. Seu
universo onírico rico em desvairadas ponderações da mente nunca antes foi tão
vívido e tão intenso justamente por isso.
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