terça-feira, 19 de março de 2019

Hercules

Em meados dos anos 1990, os Estúdios Disney buscavam influências para se desvencilhar da acusação de excessivo tradicionalismo que era a principal crítica dirigida às suas animações.
Com efeito, a versão Disney para a conhecida história do lendário herói grego Hércules pegava inspiração nos traços do animador Gerard Scarfe conhecido pelas transgressivas inserções animadas no longa-metragem “Pink Floyd-The Wall”, de Alan Parker.
De fato, há uma percepção mais livre e psicodélica no traço desta animação em comparação com a jocosidade realista que tornava desinteressante das obras anteriores da Disney, “Pocahontas”, de 1995, e “O Corcunda de Notre Dame”, de 1996 –“Hercules” foi lançado em 1997.
A lenda extraída da mitologia grega, pontuada por tragédias e traições, foi evidentemente modificada –como ficará perceptível –ganhando, inclusive, ares de heroísmo de histórias em quadrinhos: Na Grécia Antiga, Zeus, o soberano de todos os deuses do Monte Olimpo tem um filho, Hercules, herdeiro do vasto poder do pai.
Entretanto, desagrada ao maligno Hades, o deus do Mundo Inferior, o fato de que o pequeno Hercules está predestinado, dali a dezoito anos, a detê-lo, quando uma convergência de planetas possibilitar que Hades e seus Titãs subjuguem Zeus e todos os demais deuses.
Disposto a eliminá-lo, Hades elabora um plano maldoso que de pronto arremessa o ainda pequeno protagonista numa trajetória que propositalmente espelha (e muito) a de “Superman-O Filme”: Agonia e Pânico, dois demônios de segunda classe, são incumbidos de roubar o pequeno do palácio no Monte Olimpo e faze-lo beber uma poção capaz de neutralizar sua imortalidade divina –só aí então poderiam mata-lo.
Porém, devido a uma interrupção imprevista, o bebê deixa de tomar uma única gota, o que basta para manter nele a força dos deuses –com a qual enxota facilmente os dois!
Adotado pelo casal de camponeses que o encontrou, Hercules cresce sentindo-se inadequado aos demais jovens por sua força provocar seguidas confusões.
Quando atinge idade o suficiente para buscar respostas sobre sua origem, ele procura pelo famoso treinador de heróis Philoctetes –ou simplesmente Phil –que pode ajudá-lo a sagrar-se um herói entre os mortais; única maneira de ter sua divindade completamente restaurada, permitindo que volte a morar no Monte Olimpo junto de sua verdadeira família.
Se a descrição da trama pode remeter às animações mais clássicas que a Disney já produziu, a realidade prática encontrada em “Hercules” é bem outra: O retrato de Hercules, sagrado como grande herói da Grécia Antiga, obedece às graciosas caricaturas dos popstar atuais (bonequinhos colecionáveis dele próprio; fás histéricos, sessões disputadas de autógrafos); e a própria narração da animação desvia-se da solenidade do passado (parodiada, inclusive, no prólogo, com a voz de Charlton Heston) e abraça uma contemporaneidade anacrônica ao retratar as musas –o coro grego que declama as histórias –como um ‘girl group’ musical dos anos 1960, com canções ao estilo soul e gospel (!).
Não admira, portanto, que nessa sua salada quase esquizofrênica de referências, “Hercules” resulte quase contraditório: Na busca por exalar modernidade, os personagens protagonistas do filme se baseiam –veja só! –nos protagonistas de comédias dos anos 1930 3 40; Hercules é um herói inocente (tal qual Henry Fonda ou James Stewart), normalmente cercado de niilismo e patifaria por todos os lados, assim como seu encantador interesse amoroso, a bela e sedutora Mégara –ou simplesmente Meg –foge do padrão de ingênuas e afáveis mocinhas Disney para basear-se nas protagonistas mundanas e geniosas antes vividas por Jean Arthur ou Rosalind Russell; ela, inclusive tem um inédito background romântico e tumultuado e uma espécie de relação com o vilão Hades a quem segue as ordens.
Todas essas escolhas e decisões acrescentam cores bastante distintas à “Hercules” na comparação com seus pares nos Estúdios Disney –trata-se assim de um corpo estranho tal e qual o foram “Atlantis-O Reino Perdido”, logo depois, e até mesmo o malfadado “O Caldeirão Mágico”, nos anos 1980.

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